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'Criamos um novo espaço de identidade na periferia', diz Christian Malheiros, o Nando, de 'Sintonia'

Intérpretes de Rita e Nando explicam a reflexão social por trás dos seus personagens e contam como foi atuar na primeira série da Netflix sobre a favela de SP

7 set 2019 - 09h40
(atualizado às 13h01)
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Funk, tráfico de drogas e igreja. Foi partindo desses três pontos que Kondzilla, dono do canal de música que leva seu nome, idealizou Sintonia, da Netflix. A série retrata três adolescentes que crescem juntos na periferia de São Paulo e tomam rumos diferentes na vida. Nando é um traficante de 18 anos com filho e mulher para sustentar; Rita é uma jovem sem contato com a família que busca apoio na religião; e MC Doni é o 'playboy da quebrada', que ascende no mundo da música.

Os caminhos de cada um se afastam com o tempo no bairro fictício da Vila Áurea, gravado na comunidade do Jaguaré, mas o elo do trio continua forte dentro de um só princípio: a luta por sonhos. É o que afirma Christian Malheiros, intérprete de Nando, em entrevista ao E+. Por ser uma obra com cenários reais de uma favela no extremo da zona oeste, o ator acredita que Sintonia abriu um campo inédito de representação no mercado de séries do Brasil.

"O brasileiro pobre costuma ser retratado em uma favela do Rio de Janeiro, que é totalmente diferente da de São Paulo. Então criamos um novo espaço de identidade [paulistana] na periferia até então pouco mostrado", explica ele. Bruna Mascarenhas, que vive a Rita na trama, concorda com a opinião de Malheiros. Segundo ela, Sintonia estimula uma reflexão social sem levantar bandeira, como ao mostrar a influência da fé evangélica no subúrbio da cidade - cada vez mais capilarizada nas franjas da metrópole.

"Antes de assistirem, peço que as pessoas saiam do julgamento, porque hoje em dia a gente precisa enxergar a situação nua e crua do nosso País para entendê-lo. Cresci sabendo que o Brasil era majoritariamente católico, e agora ele está virando predominantemente evangélico. E por que esse cenário está mudando? A Rita é um reflexo disso", analisa. E não é para menos: nos últimos 25 anos, São Paulo ganhou 2,3 mil templos evangélicos, segundo dados da Prefeitura obtidos na quinta-feira, 5, pela Folha de S. Paulo.

Tem gente que 'não sabe o que é uma realidade de favela'

Apesar de Sintonia receber muitos elogios, há quem diga em blogs e redes sociais que a série pecou pela superficialidade por ter apenas seis episódios, tocar funks 'chicletes' e expor gírias da periferia - vistas como "diálogos pobres" e "irritantes" para algumas pessoas.

Christian Malheiros, no entanto, considera que é importante entender de onde vem essas declarações. "Superficial para quem? Porque se for para um crítico que está uma hora dessas no seu apartamento nos Jardins [bairro nobre de São Paulo], com ar condicionado, escrevendo uma crítica de cinema, está explicado. O cara não sabe o que é uma realidade de favela", diz o ator, que cresceu em Vila Nova, na periferia de Santos.

De acordo com ele, esse pensamento não representa as mensagens que recebe diariamente de pessoas periféricas que se identificaram com a série. "Já me disseram: 'caramba, o Nando é a história da minha vida', 'já fui um Nando', 'conheço um amigo que foi um Nando e teve um fim trágico', 'a relação do Nando com a mulher é uma relação que eu tinha com meu marido'. Então vejo que nós criamos em Sintonia a oportunidade de as pessoas se enxergarem em algum lugar", conta.

O jornalista Vinícius Nader é um dos críticos à Sintonia. Diz ele, em seu blog, que "o roteiro é fraco, raso, recheado de estereótipos" e as conversas do elenco "mais irritam do que levam à reflexão". Questionada sobre isso, Bruna Mascarenhas contrapõe dizendo que a primeira temporada foi uma apresentação do que pode estar por vir, caso a série ganhe uma segunda temporada.

"A primeira é uma abertura para entender os personagens e os conflitos. Na próxima, aí sim o público saberá qual caminho eles realmente estão trilhando", prevê. Sem dar spoilers, a atriz acredita inclusive que o desfecho de sua personagem Rita nesse primeiro ciclo é apenas o começo da história.

'Se não fosse a arte, talvez eu seria o Nando da vida real'

Hoje com quase um milhão de seguidores no Instagram e sob os holofotes do cinema, Christian Malheiros, de 19 anos, nunca teve uma vida fácil - e tampouco desfrutou das belas vistas para o mar que os apartamentos da orla de Santos oferecem à classe A da cidade. Vivendo na periferia de Vila Nova da cidade litorânea, ele enxergou de perto o que Sintonia exibe para o mundo.

"Fui resgatado pelo teatro. Tanto é que se e não fosse a arte na minha vida, talvez eu seria o Nando da vida real, porque o contato [com o crime] na favela é direto. Você acorda e vê o cara vendendo [droga]. Não tem maquiagem, não tem filtro nem cuidado", relata. "Sem o teatro, eu não saberia onde estaria uma hora dessa. Tive amigos que não tiveram boas oportunidades como eu e infelizmente foram para o mundo do crime, para outros caminhos", lamenta.

Há vários Nandos, Ritas e Donis espalhados por aí

O ator mora hoje no centro de São Paulo e conta que basta sair de casa para enxergar a relação de Sintonia com a vida real. "É só eu atravessar a rua para ver Nandos, Ritas e MCs Doni", diz ele, que chegará aos cinemas brasileiros em 26 de setembro com o filme Sócrates, sobre um adolescente que perde a mãe precocemente e vive em pobreza extrema.

Para Malheiros, Nando é um 'lobo solitário' que, assim como muitos jovens brasileiros, precisa desde cedo pular etapas da vida para assumir responsabilidades de gente grande com a família - e nem sempre isso ocorre dentro da lei. Assim, o artista revela que sua maior preocupação sempre foi conseguir encarnar a tensão do Nando e entender como é viver nessa situação a todo momento.

"Ele é uma panela de pressão: está sempre borbulhando e não explode. Então meu estudo se baseou nisso: entender como é a vida desse cara que não dorme, não relaxa e que a qualquer momento alguém pode puxar o tapete dele no crime. O que eu pus para fora nesse personagem foi a vida real. Não houve idealização", confessa.

O intérprete de Nando afirma ainda que quem não enxerga essa realidade da juventude brasileira é insensível aos problemas nacionais. "Muitos aceitam receber um conteúdo audiovisual forte quando esse vem de outro país. Mas quando é do nosso, mostrando a favela, o funk, expressões locais ou o crime, ignoram ou tratam com discriminação. Isso é um preconceito que temos enraizado em nós", critica.

Bruna reforça a opinião do colega ao lembrar das cenas sobre a relação entre policiais corruptos e traficantes. "É importante quando trazem a milícia policial na história, porque nos faz refletir sobre o discurso de que 'bandido bom é bandido morto'", analisa. "O público precisa usar essa parte da série para pensar qual bandido é esse que a sociedade imagina que é bom morto. Quem é bandido? Seria só o vendedor de droga? O que vem na sua cabeça ao pensar em um criminoso? A partir dessas reflexões que quem assiste começa a discutir o que está rolando na nossa sociedade", completa.

Por dentro do dialeto da 'quebrada'

Bruna Mascarenhas, de 23 anos, não é de São Paulo. Ela nasceu e cresceu em Niterói, no Rio, em uma família de classe média, e veio tentar a vida na capital paulista em julho deste ano. Na época, estranhando o inverno da cidade ao qual não estava acostumada, a atriz arranjou em três dias um emprego num restaurante de luxo. O salário lhe daria condições de pagar o aluguel de R$ 500 na casa com 19 pessoas onde morava. Mas o que ela não imaginava era que logo mais seria aprovada em um seriado da Netflix, lançado em 190 países.

Formada em artes cênicas, Bruna primeiro fez teste para uma obra de comédia e não passou; depois, soube da desistência da atriz que seria Rita em Sintonia, candidatou-se para assumir o papel e foi aprovada. A partir de então tudo mudou: pediu demissão do trabalho e teve duas semanas para preparar a personagem. Nesse tempo, ela contou com a ajuda de uma fonoaudióloga para 'perder' o sotaque carioca e se comunicar como uma jovem da favela de São Paulo.

"Precisei falar igual paulista com a minha família e amigos cariocas. Os meninos, Jottapê [ator que fez MC Doni] e o Christian, me apoiaram muito. Eu mandava mensagem de madrugada pelo WhatsApp e eles me respondiam com áudios dos amigos da quebrada", recorda. "Faltavam cinco dias para gravar, achava que o sotaque não estava legal ainda e bateu aquele medo: 'será que eu vou conseguir?'. Deu tudo certo", comemora. Veja como ficou Rita em um trecho extra da série:

Hoje, Bruna recebe mensagens de fãs dizendo que se identificaram com o encontro com a fé cristã de Rita, o que a faz ter boas expectativas com o futuro da personagem - caso a série ganhe continuidade. "Espero que ela encontre o seu caminho, pois dos três, a Ritinha é a única que não sabe direito o que quer. A vida dela está sempre dando reviravoltas", afirma.

Malheiros, por sua vez, torce para que Nando não perca o elo com os amigos, independentemente do que o mundo do tráfico lhe causar. "Existe o Nando parceiro da Rita e do MC Doni, e existe o Nando do crime. Acho legal quando ele está com os 'parças' e a família, pois são os raros momentos que ele demonstra sua humanidade e sensibilidade".

Mas vai ter segunda temporada?

Em entrevista ao Danilo Gentili, Kondzilla afirmou que já tem em mente planos para a segunda e terceira temporada, mas a Netflix e a produtora Losbragas, responsável pelas gravações, ainda não confirmaram a continuação de Sintonia.

Os fãs, no entanto, já estão cobrando nas redes sociais. "O papo é o seguinte: a segunda temporada tem que sair a milhão. Tá ligada nas fita, né Netflix? Aqui nois é certo pelo certo, sem atrasar o lado de ninguém. Tendeu a caminhada? (sic)", escreveu uma seguidora do perfil da série no Instagram.

* Estagiário sob a supervisão de Charlise Morais

Estadão
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