'ORioLear': Tragédia de Rei Lear é adaptada para uma Floresta Amazônica devastada; conheça peça
O dramaturgo e diretor Newton Moreno se inspira em clássico de Shakespeare para abordar a crise climática na peça protagonizada por Leopoldo Pacheco e que estreia no Itaú Cultural; reserva de ingresso começa nesta terça, 29
Em novembro de 2021, na lenta retomada presencial em meio à pandemia, o dramaturgo e diretor pernambucano Newton Moreno, de 56 anos, estreou o espetáculo Sueño na área externa do Teatro João Caetano, na Vila Clementino. Livremente inspirada na peça Sonho de uma Noite de Verão, de William Shakespeare (1564-1616), a montagem promovia uma reflexão sobre os regimes autoritários na América Latina através de uma metalinguagem que envolvia uma companhia de teatro. "Para mim, era como se estivéssemos falando do óbvio, mas fiquei impressionado com a quantidade de jovens que recebemos na plateia e não tinha noção do que foram as ditaduras militares", lembra.
Alguma chave virou na cabeça de Moreno e guiado por uma sensação de urgência, ele transformou as características de sua própria escrita. O novo ciclo criativo, de caráter político e social em diálogo com os clássicos e a história recente, pouco lembra as comédias que o consagraram, como As Centenárias (2008), montada pelas atrizes Andrea Beltrão e Marieta Severo, e Maria do Caritó (2010), protagonizada por Lilia Cabral, inspiradas nas tradições nordestinas.
Dentro desta vertente contestatória, Moreno coloca em cartaz nesta quinta, 31, um novo mergulho na obra de Shakespeare, desta vez batizado de ORioLear. O espetáculo, uma livre adaptação de Rei Lear, texto escrito em 1606, estreia no Itaú Cultural, transportando a tragédia do monarca inglês traído pelas filhas para o ambiente da Floresta Amazônica diante da crise climática.
O ator Leopoldo Pacheco interpreta o velho latifundiário do interior do Pará que começa a distribuir as terras entre as três herdeiras, Goneril, Regan e Cordélia (vividas pelas atrizes Sandra Corveloni, Michelle Boesche e Simone Evaristo). "Rei Lear é um texto que oferece um caleidoscópio que muda o foco de tempos em tempos para estabelecer novas conexões com a sociedade", define Pacheco, que trabalha com o dramaturgo e diretor há duas décadas.
"Se Newton encarou as ditaduras em Sueño, agora ele se debruçou sobre as questões ambientais e indígenas levando para a frente o debate de temas importantes, como gênero, raça, ideologia, uma característica do teatro brasileiro neste momento."
O elenco é completado por Jorge de Paula, José Roberto Jardim e Ronny Abreu, ator indígena paraense que mora em São Paulo há 30 anos e participou de peças da Cia. São Jorge de Variedades, entre outros grupos. Abreu, com o seu lugar de fala, conduziu os demais artistas a um entendimento da matriz desta história durante o processo de pesquisas e ensaios.
Assim como Pacheco, Sandra, Jardim e Michelle defenderam os principais personagens de Sueño e integram o coletivo batizado de Heroica Companhia Cênica, fundado por Moreno para ter por perto colegas interessados em pesquisas relacionadas às problemáticas contemporâneas. "O que sinto é que passei a escrever histórias movidas pela emergência de serem contadas e, com poesia e lirismo, talvez consiga alertar as pessoas", afirma Moreno. "É só a gente pensar na devastação da Amazônia ou nas enchentes do Rio Grande do Sul para entendermos que a discussão climática não pode mais ser adiada."
Na trama criada pelo autor, Lear é um grileiro vindo do sul do país que se apoderou de terras alheias no Norte e, inclusive, pegou para si o nome do curso de águas que banhava a região, o Rio Lear, prestes a secar. Depois de dividir as propriedades entre as duas filhas mais velhas, o velho fazendeiro é expulso do palácio e sai a vagar pela floresta. O reencontro com Cordélia, a caçula e casada com um líder indígena (papel de Abreu), serve como uma espécie de reeducação para Lear, que, deslumbrado com a beleza que ainda resiste em meio às cinzas, lamenta a destruição que provocou em nome do dinheiro: "Floresta na minha casa era só as madeiras que viraram móveis", diz o personagem em uma das suas falas.
Ao contrário do longo processo de pesquisa e preparação de Sueño, que incluiu viagens ao Chile, Argentina e Uruguai em dois anos, Moreno e o elenco criaram ORioLear em três meses sob um orçamento controladíssimo e por meio de consultas documentais e entrevistas com geólogos, jornalistas, antropólogos e cineastas que conhecem bem a Amazônia. "Mesmo que tivéssemos recursos, ninguém nos aconselhou a fazer pesquisas de campo porque são cidades sem lei e não poderíamos chegarmos lá com o papo ingênuo dos artistas de teatro", diz Moreno.
A chave poética, entretanto, se sobrepõe à questão documental para que o alerta catastrófico não deixe a peça tão pesada e difícil para o público. "Nós concentramos a história nos conflitos da família e, falando de dentro da casa grande, damos o ponto de vista desta elite do atraso", explica Moreno. "Na segunda parte, os personagens saem do latifúndio e entram dentro da floresta, tendo o rio como a voz dessa agonia."
Provocado sobre qual outro clássico de Shakespeare poderia fechar essa trilogia involuntária em diálogo com as questões brasileiras, Moreno levanta a possibilidade de uma adaptação de A Tempestade, peça de 1611. "A colonização que abrange a América Latina poderia ser vista a partir dali", completa.
Peça 'ORioLear'
- Onde: Itaú Cultural. Avenida Paulista, 149;
- Quando: de quinta-feira, 31, até 17 de agosto;
- Horários: Quinta a sábado, 20h; domingo, 19h;
- Ingressos: Grátis. Reservas a partir da terça-feira da semana de apresentação no site, aqui.