'O Rei da Vela' ressalta atualidade da obra de Oswald de Andrade
Em 2017, José Celso Martinez Correa conduziu uma remontagem da versão do Oficina, nos mesmos moldes da original; em 2018, Os Parlapatões estrearam uma leitura debochada
O Rei da Vela é um texto que retorna para contar a história que o Brasil insiste em esquecer. Escrita em 1933, a peça de Oswald de Andrade permaneceu desconhecida até 1967, quando o Oficina conduziu uma encenação que marcou a trajetória do teatro brasileiro e serviu de impulso para importantes transformações culturais, como o movimento tropicalista. Mesmo com tamanho impacto, o texto voltou a um relativo esquecimento durante 50 anos e só retornou com força agora, quando o País parece ter empreendido uma viagem no tempo, repetindo erros passados.
Em 2017, José Celso Martinez Correa conduziu uma remontagem da versão do Oficina, nos mesmos moldes da original. A seguir, em 2018, Os Parlapatões estrearam uma leitura debochada, o que tornou a atualidade radical da obra ainda mais flagrante. Para compor o seu espetáculo, o diretor Hugo Possolo tratou de explorar as características mais marcantes de sua própria companhia: o humor e as raízes circenses.
Com uma linguagem absolutamente moderna para a época em que foi escrita, O Rei da Vela conta a trajetória de Abelardo I, um burguês que, depois de enriquecer emprestando dinheiro a juros para os mais pobres, pretende legitimar-se socialmente casando-se com a herdeira de uma falida família da aristocracia paulista. Fala-se, sobretudo, da transferência de poder de uma classe - a aristocracia cafeeira - à outra - a burguesia urbana. Um processo que aposta em algumas mudanças para que a estrutura do poder permaneça a mesma.
Na adaptação dos Parlapatões, quebra-se a estrutura da peça, dividida em três atos. O final, em que o protagonista morre, é trazido para a cena inicial e esmiuçado ao longo da montagem. Além disso, Oswald de Andrade torna-se personagem de sua própria criação (interpretado por Nando Bolognesi). Surge no palco para comentar algumas passagens e trazer rubricas de algumas ações. Ainda que esse narrador não tente resgatar a aparência ou o espírito do escritor, suas intervenções são relevantes por dar à peça um sabor de teatro épico - técnica que busca o distanciamento entre o que é colocado em cena e o espectador, para que esse possa analisar criticamente o que está vendo.
Nessa subversão dos atos, algumas passagens do texto são suprimidas. Há certas relações propostas pela dramaturgia - o texto de Oswald está sempre criando duplos sentidos - que se perdem. Reduz-se o diálogo mais longo entre Abelardo e Heloísa de Lesbos, sua noiva. As participações do personagem do Americano, um imperialista pronto a dominar a burguesia local, também se tornaram mais breves. A despeito das perdas, o resultado é positivo. Os cortes trazem um ritmo mais dinâmico e favorecem uma feliz aproximação com episódios contemporâneos.
Esses trânsitos entre uma obra dos anos 1930 e o noticiário de hoje são mais evidentes do que se poderia supor. O País do século 21 não é mais que um simulacro, fantasia para uma estrutura que permanece arcaica e colonial. A encenação se apoia não apenas na graça circense - com a qual a trupe se sente tão à vontade - mas também lança mão da estrutura do teatro de revista.
Na revista, gênero típico do início do século 20, os números musicais eram essenciais, assim como a sátira, que se voltava em especial contra a hipocrisia da sociedade e dos políticos. Os Parlapatões trilham esse caminho, mantendo uma banda no palco, dando às cenas uma aparência de esquetes cômicos e carregando na crítica a hipocrisias passadas e presentes. Dessa maneira, tanto o impeachment quanto a greve dos caminhoneiros podem ser motivo de riso, sem que seja necessária uma atualização da trama ou expediente parecido.
O maior achado da montagem dirigida por Hugo Possolo, contudo, é a sua própria atuação. Durante a Semana de Arte de 1922, o ator Abelardo Pinto, o palhaço Piolin, tornou-se objeto de culto e reconhecimento. Era tratado como exemplo de artista genuinamente popular, uma ideia que começava a fazer sentido naquela época.
Na pele de Abelardo I, Possolo resgata a inspiração de Oswald na hora de compor o protagonista e lhe dá os traços do famoso Piolin. Parece ter as pernas alongadas. Tenta emular trejeitos, traz a maquiagem em preto e branco e, particularmente, o talento do velho palhaço como comunicador. Mas não fica apenas na imitação. Com ironia - e um travo melancólico que lembra a máscara do clown - o ator consegue construir uma figura tão sórdida e patética como os dias que seguem.