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Trovador cubano Silvio Rodriguez ressurge com álbum primoroso

Aos 76 anos, brigado com Pablo Milanés e atacado nas redes por questões políticas, um dos mais importantes cantores e compositores de Cuba dedica disco a mortos pelo coronavírus

1 jul 2020 - 18h14
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Ele não fala, prefere assim. Silvio Rodríguez, o trovador cubano de San Antonio de Los Baños, está com 76 anos, saudável, produtivo e em silêncio. Suas entrevistas são raras, assim como têm ficado seus álbuns, mas sua voz, que nem sempre ecoa em meio a acordes consoantes, está admiravelmente límpida, como nos anos em que abraçou a Revolução Cubana para fazer grandes discos. Seu trabalho mais recente sai agora, cinco anos depois do irrepreensível Amoríos. Menos opulento, de feitura quarentenada, Para La Espera é dedicado sutilmente a sete mentes criativas da comunidade latino-americana que morreram recentemente vitimadas pelo novo coronavírus. Dentre elas estão dois artistas cubanos, com informações imprecisas sobre a causa de suas mortes mas que todos sabem serem vítimas da Covid-19: o cineasta Tupac Pinilla Núñez, de 48 anos, e o cartunista Juan Padrón, de 73 anos, este último noticiado como "vítima de uma enfermidade pulmonar."

Seria uma forma sutil de Silvio dizer ao mundo que Cuba não está como o mercado mundial de turismo a vende, um reduto para quem quer fugir da pandemia? Talvez Silvio esbarre nisso sem querer, mas, em uma primeira percepção, não faz um barulho capaz de aniquilar a força de seu álbum. Mesmo sob voz e violão, como quase sempre foi desde que lançou seu primeiro álbum, Días Y Flores, em 1975, Para la Espera tem Silvio em todas as fundações do que passou-se a chamar de Nova Trova Cubana, um movimento em Havana do final dos anos 1970 que ele incorporou sobretudo ao lado de Pablo Milanés, Noel Nicola e Vicente Feliú. Sua coleção de 13 novas canções abre com La Adivinanza, com a harmonia menor e de quebras bruscas sem deixar o doce das linhas melódicas, uma marca de sua obra. E, em seguida, a delícia de Aunque No Quiero, Veo que me Alejo, um guajiro sensível e convidativo, algo que acontece quando os novos trovadores, que chegavam para avançar o campo das tradições deixado pela "vieja trova" de Compay Segundo, Elíades Ochoa e Omara Portuondo, deixam de ser roqueiros, jazzistas ou qualquer outra coisa que tenham buscado pelo mundo para lembrarem de que são cubanos.

Si Lúcifer Volviera al Paraíso tem mais uma das construções harmônicas inesperadas de Silvio ao violão para uma letra que vem atestar sua velha boa forma, e que pode ser traduzida mais ou menos assim, em versos colocando em xeque a existência da Igreja Católica. "O anjo mais bonito e consentido / foi desterrado por contradizer / E desde então, a todos os nascidos / muitas vezes somos julgados por discutir / Se Lúcifer retornasse ao paraíso / se fosse perdoado pela lei / por tudo o que ele disse e o que fez / seria apenas mais um de nosso rebanho." Modo Frígio, ou Tema Soñado, é uma canção dramática, como tudo o que é feito sobre esse modo frígio, uma das organizações gregas de sonoridades, muito ligada aos sons hispânicos e árabes. Danzón para la Espera, com esse gênero apreciado pelas velhas gerações, ganhou um clipe feito com um celular pela filha de Silvio, Malva, durante a quarentena, com imagens da natureza que ronda sua bela mansão de descanso na praia de Jibacoa, em Santa Cruz del Norte, com uma das janelas dando vista para o verde do mar caribenho e outra para as montanhas.

Silvio opta por calar-se, talvez, pela alto grau de combustão de algumas de suas frases em uma sociedade tão dividida quanto a cubana. Em 2014, algumas de suas declarações aparentemente contra a oficialidade cubana, escritas em seu site pessoal, Segunda Cita, nome de um de seus álbuns, surpreendeu os apoiadores do regime. Alguns usaram justamente sua vida de conforto no bairro de Vedado e na casa de veraneio para atacá-lo. "Desde sua residência permanente em Vedado e sua mansão, é certo que não é mais possível ver as penúrias do povo", disse um leitor do site 14ymedio. Um grupo de leitores apontaram a possibilidade de Silvio estar querendo desembarcar do regime que tanto apoiou "agora que ele sabe que o fim da ditadura é iminente e que está chegando a hora de ajustar as contas" Ele também está rompido com Pablo Milanés por rusgas políticas na internet, mas fala como se não quisesse centralizar a verdade do mundo. "Descubro parte da minha verdade em pessoas que não pensam como eu", disse, em uma rara entrevista de 50 minutos, feita em 2017, que está no YouTube.

A vida de Silvio Rodriguez se embrenha à própria Revolução Cubana de 1959, quando Fidel Castro e Che Guevara tomaram o poder do ditador Fulgêncio Batista para instalar um regime comunista na Ilha. Quando tinha 19 anos, em 1964, ele ingressou no serviço militar e, ali mesmo, começou a tocar violão, um ato que o faria criar suas primeiras canções. Quatro anos depois, estava com Pablo Milanés e Noel Nicola mno primeiro concerto de sua vida, na Casa de las Americas. O trio foi a base do conceito sonoro do Grupo de Experimentación Sonora (Gesi) do ICAIC (Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográfica). Seria esta a base de 1972 da chamada Nueva Trova Cubana, politizadas, alinhadas e, muitas vezes, críticas ao próprio regime. As primeiras canções dos álbuns coletivos do Geisi deixam claro um rompimento com as formas tradicionais cubanas, do son, do danzón e dos boleros, e um movimento em direção ao rock e até ao jazz.

A indignação seria algo indissociável de sua obra. Quando Che Guevara foi morto por tropas bolivianas, em 1967, ele compôs os sons roqueiros La Era Está Pariendo un Corazón e Fusil contra Fusil, que estaria em seu álbum Hasta la Victoria Siempre. Suas aparições frequentes ao programa de TV Mientras Tanto, em 1968, causariam a extinção do especial logo depois de seus elogios estusiasmados aos Beatles. O rock em Cuba, a música dos imperialistas, era algo simplesmente proibido pelo regime de Fidel.

Chico Buarque foi um dos primeiros brasileiros a gravar Silvio Rodriguez, quando escolheu Pequena Serenata Diurna para seu disco de 1978. Milton Nascimento foi ainda mais longe. Chamou a argentina Mercedes Sosa para fazer uma comovente Sueño con Serpientes no álbum Sentinela, de 1980. Uma música que abria com frases de Bertold Brech e que sobreviveriam a revoluções e pandemias sem perder a ternura:

"Há homens que lutam um dia porque são bons

Outros que lutam por um ano porque são melhores

Os que lutaram por muitos anos são muito bons

Mas há os que lutam a vida toda são os essenciais"

Estadão
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