'Exile on Main St.', dos Rolling Stones, revisitado e repensado
Uma versão menos conhecida de Loving Cup, dos Rolling Stones, que faz parte do disco bônus que acompanha o relançamento de Exile On Main Street, um álbum de 1972, me parece a melhor coisa que o grupo já gravou.
É uma mistura de gospel e country com ar de safadeza, que parece nascida de um cochilo. Os acordes de piano de Nicky Hopkins giram em tempo lento na escala de sol, em uma sala repleta de ecos. Charlie Watts começa a usar o bumbo na terceira batida do segundo compasso; ele pode estar adiantado ou atrasado, mas não demora a se acertar. Piano e bateria rodam até o acorde de lá no início da primeira estrofe, e Mick Taylor usa duas cordas da guitarra em uma fusão distorcida para acompanhar o primeiro verso cantado por Mick Jagger: "I'm the man on the mountain - yes, come on up". Mais adiante, Watts parece circular a batida central da música, usando o chimbau e o prato de condução. .Ele tanto orienta quanto acompanha a euforia do grupo, e a sutil aceleração da canção. A banda se agrupa em torno da música como um grupo de batedores de carteira, interferindo com ela. Keith Richards, na guitarra base e vocais de apoio, abandona a segunda voz e começa a gritar.
A gravação representa, para mim, o som de Exile em sua versão ideal: uma viagem escura, densa, frouxa e quase inconsciente pelo blues, country e gospel dos Estados Unidos, gravada em um porão na França. Exile foi produzido durante o pico de criatividade da banda, e em circunstâncias incomuns: exilados por motivos de impostos, eles estavam vivendo longe de casa involuntariamente.
O álbum costuma ser classificado como um dos melhores já gravados, e definido como um álbum conceitual a posteriori: uma sábia viagem de horror, um diário sonoro de astros do rock forçados a enfrentar os rigores do casamento, filhos e vícios.
Recentemente, refletindo sobre essa versão alternativa de Loving Cup e sobre sua ausência no disco original, comecei a questionar qual era exatamente a de Exile. Para mim, a maior parte do disco é boa mas não excelente. (Aquela era na música dos Stones é fantástica, mas o disco nem tanto.) Não consigo vê-lo como obra-prima, não só porque desconfio da ideia de obras-primas como porque não acho que combine com os Stones, grupo que cria canções e álbuns como se fossem ninhos de pássaros: emaranhados colaborativos com um delicado equilíbrio interno. O grupo também é conhecido por sua excelente filtragem e aproveitamento de trilhas e trechos gravados ao longo de períodos extensos. Mas Exile continua a ser o disco preferido dos mais judiciosos fãs da banda. Por quê? Qual é sua essência?
A questão é complicada. Exile pode parecer uma unidade de som, lugar e tempo; o fato de que uma de suas melhores canções, Ventilator Blues, tenha sido inspirada pelo desconforto do estúdio montado no porão de Nellcote, a mansão alugada por Richards na Riviera francesa, foi tema de muitos comentários. Quem presta atenção, consegue ouvir o calor.
Mas as gravações de Exile não aconteceram todas naquele porão. Estenderam-se de 1969 a 1972, durante um período que resultou em dois outros álbuns excelentes e, a meu ver, superiores -Let it Bleed e Sticky Fingers. Nem sempre temos presente a banda que todos conhecem e talvez amem: há faixas em Exile nas quais os músicos participantes não os usuais. (O produtor Jimmy Miller toca bateria em Happy e Shine a Light, em lugar de Watts. Taylor, Richards e Bill Plummer tocam baixo em metade das faixas, no lugar de Bill Wyman.)
Na verdade, a versão de Loving Cup que descrevi acima não foi gravada em Nellcote, mas no Olympic Studios, em Londres, na metade de 1969. (A versão do disco -mais contida e nem tão boa- foi registrada em Los Angeles, depois da passagem do grupo pela França.) A experiência de Nellcote foi importante para Exile, não resta dúvida. Mas o trabalho de diversos pesquisadores da obra da banda indica que mais de metade do álbum foi gravado em outros locais, e em condições de trabalho mais convencionais.
O relançamento tanto garante o lugar de Exile quanto o questiona. O primeiro disco -uma versão mais límpida do álbum original, com som muito melhor que o do remastering de 1994, exibindo um baixo mais nítido e detalhes mais reveladores- reforça a ideia do álbum como uma unidade intocável, densa, peculiar e brilhantemente pós-produzida -um objeto único. Mas o segundo disco adicional detona essa ideia, com novas trilhas vocais de Jagger sobre o acompanhamento original de Exile, gravado na mesma época. Por isso, agora temos o álbum de duas perspectivas: primeiro como um produto completo, uma obra-prima em 18 faixas, se vocês quiserem definir assim; e segundo de forma mais ampla e mais amorfa. Se estou lendo os sinais corretamente, as duas perspectivas têm relação sobre o modo pelo qual Richards e Jagger, respectivamente, pensam sobre o disco.
Jagger, que ao longo dos anos criticou a produção do disco e questionou a força das composições, se mostra mais disposto a abandonar Nellcote como polo central do álbum.
"O disco não seria o mesmo sem Nellcote", ele diz. "Mas tampouco seria o mesmo sem o que gravamos em Londres. Nellcote era uma estufa, era viver no estúdio. Mas qual teria sido a diferença se a gravação de Ventilator Blues acontecesse no Olympic ou em Los Angeles? Quem sabe, e quem se importa?"
Miller, o produtor do álbum, morreu em 1994. Por isso, Jagger encomendou ao produtor Don Was uma pesquisa sobre material de estúdio adicional gravado na época. ("Quando Mick me procurou para isso", conta Was, "era como se estivesse pedindo que eu carregasse o lixo para fora".) Mas Jagger acabou se interessando pessoalmente pela busca, tentando determinar que material poderia ser incluído como bônus no relançamento. O vocalista diz que pensou apenas em termos cronológicos, e não de estilo, som, local ou outros critérios. Para ele, Exile é menos uma sequência específica de faixas que uma era de gravações, iniciada pela de Loving Cup no Olympic.
"Dizer que aquilo que foi criado em Nellcote resultou de uma atmosfera incrivelmente decadente é uma boa história", diz Jagger. "Sim, é verdade que a atmosfera afetou o feeling da música e o som do estúdio. Mas ninguém pode saber quanto. No fim, é só um mito".
Perguntei se ele distingue o som de Nellcote ao ouvir o disco.
"Não faço ideia do que vem de Nellcote e o que não vem, para ser honesto", respondeu.
Ah.
Richards discorda. "Os ossos e músculos do disco foram gravados naquele porão", diz, diante da mesma pergunta, em entrevista por telefone. "Mas a palavra 'exílio' descreve perfeitamente a atmosfera e condições da gravação. Tivemos de deixar nossas casas na Inglaterra. Não que fôssemos grandes patriotas, mas é muito chato ter de transferir todo o seu trabalho com um grande número de pessoas".
Richards não se envolveu muito com o material adicional do álbum, e não queria alterar nem mesmo as faixas descartadas e as não lançadas, como disse a outro jornalista semanas atrás: "Não queria interferir com a Bíblia".
"Meu papel era garantir que não houvesse estranhos", ele me disse. "Não queria mexer com nada daquilo. É tudo analógico, claro, e a remixagem envolve conversão para o padrão digital. Mas, fora isso, eu disse não a todas as ideias brilhantes".
Não está claro que Jagger tenha ouvido. Ele gravou novos vocais para quatro das faixas adicionais: Plundered My Soul, Following the River, Dancing in the Light e Pass the Wine. Na primeira, depois de uma nova abertura de guitarra por Taylor, ouvimos a voz do cantor de 66 anos cantando letras recentes: um aristocrata envelhecido descrevendo os apetites de um homem mais jovem, sobre uma trilha que mostra os Stones desgastados e abatidos mesmo que todos ainda estivessem na faixa dos 20 anos de idade.
Was acha que nem mesmo os Stones sabem quando a trilha instrumental da faixa foi gravada.
O mais estranho é que Plundered My Soul é muito boa: a canção mais enérgica e com mais pique que os Stones lançaram em quase 30 anos, pelo que recordo. Até recentemente, o grupo relutava em lançar suas canções inéditas. Talvez isso se deva ao fato de que são bons em encaixar material antigo em novas gravações ¿as canções gravadas três anos antes e reaproveitadas em Exile, as canções gravadas nove antes (Tops e Waiting on a Friend), que receberam novos vocais e vida nova em Tattoo You, de 1981.
O material adicional restante também é ótimo, com ou sem mistérios. Was diz que duas faixas vêm de Nellcote -o petulante shuffle I'm Not Signifying e uma versão alternativa de Soul Survivor cantada por Richards. Outra delas, Title 5, um instrumental sacana, veio de uma caixa de fitas identificada com 1969, mas que Was acredita ter sido gravada mais cedo. Concordo com ele.
Não sei se um grande álbum deve relatar o que os membros da banda tinham na cabeça ao gravá-lo, ou onde estavam geograficamente. Mas no caso dos Stones o que quero é ouvir o som da banda, sem enfeites. Os Stones compunham e arranjavam suas canções com cuidado, mas o disco em questão tem mais jams que composições trabalhadas; embora só uma das faixas tenha mais de cinco minutos, diversas delas parecem oscilar devido a uma certa desorientação -Happy, Casino Boogie, Stop Breaking Down, Shine a Light -metade do disco, na verdade.
Ainda assim, por conta de sua excentricidade coesa, Exile deve ser ouvido inteiro, ou pelo menos em sequências de mais de uma faixa, o que inclui especialmente as duas grandes sequências de Rocks Off para a ainda mais pesada Rip This Joint, e do rugido zangado de Ventilator Blues para a nebulosa e suave I Just Want to See His Face. A voz de Jagger é excelente em todas as faixas, como se ele estivesse determinado a se fazer ouvir. O ritmo claudicante de Richards em Tumbling Dice é uma das maiores energias na história da música popular, mesmo que a canção em si nunca tenha me apaixonado.
De volta à versão alternativa de Loving Cup, que parece ser a estrela da empreitada.
Perguntei a opinião de Don Was. "Há um som identificado a Exile que se tornou parte do vocabulário de todo músico de rock, posteriormente", ele disse. "E essa é a faixa que caracteriza o estilo do álbum; não há frouxidão; o que temos é abertura, com relação a onde cada músico sente a batida. Temos cinco indivíduos sentindo a batida de forma diferente. Em algum ponto, a força centrífuga do ritmo não basta para manter a unidade da banda. Aquela versão de Loving Cup é a maior amplitude que uma banda pode atingir sem destruir a canção".
O que me pareceu importante foi a frase "a faixa que caracteriza o estilo do álbum", já que estamos falando de uma faixa que na verdade não foi lançada na versão original do disco. Para mim, Exile funciona melhor como sugestão do que como fato.