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Black Alien faz sua afirmação criativa mais poderosa desde 2004

Com seu novo disco 'Abaixo de Zero: Hello Hell', rapper fluminense encara a sobriedade de frente com versos e flow afiados, e produção inspirada de Papatinho; primeiro show ocorre na Virada Cultural em São Paulo

18 abr 2019 - 03h11
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"Esse é o retorno do cretino / dos clássicos, hits, hinos e o bolso cheio de pino." Essas são as primeiras palavras depois do play no novo disco de Gustavo de Almeida Ribeiro, o Black Alien, Abaixo de Zero: Hello Hell. Logo depois, no refrão da mesma música, ele avisa: "Vim pesadão, ninguém vai me derrubar". O terceiro disco da carreira do rapper niteroiense representa uma lufada de ar fresco numa trajetória que começou nos anos 1990, atingiu um pico de criatividade artística do rap nacional com Babylon By Gus Vol. 1, em 2004, e viu outros bons momentos nos últimos 15 anos.

Porque apesar de ter lançado o Vol. 2 (No Princípio Era o Verbo) em 2015, é com Abaixo de Zero que Black Alien faz sua afirmação musical mais consistente desde 2004, despejando uma sinceridade afiada sobre um tema pouco explorado pelo rap brasileiro: a sobriedade.

"Se um dia a coragem foi líquida, agora ela é sólida, irmão / Tenho não só que lidar com a vida / Lido com ela sem pó e sem dó, então / Sozinho, eu tô em má companhia, tá ligado?" diz na segunda faixa, Canção Para Amy, referência à cantora que sucumbiu aos tóxicos de que ele agora se livrou. "Meu fígado não concordou com meu estilo de vida / Meu cérebro acordou, tirou meu bloco da avenida / Um-nove-nove-três, primeiro rapper da cidade / Dois mil e dezenove, poucos rappers dessa idade", diz em Take Ten.

Mas é na afiada Aniversário de Sobriedade, um verso único, sem refrão, sobre uma base de piano e sax, que ele resume seu próprio espírito chegando para esse disco: "Tô sem frases, o que me trazes? / Isso é metanfetamina, a droga dos kamikazes/ Precisam de coragem pra poder morrer na guerra / E eu preciso de coragem pra viver fazendo as pazes — ou quase".

O disco, lançado pelo selo Extrapunk, já está disponível nas plataformas digitais. A estreia da turnê está marcada para o dia 18 de maio, na Virada Cultural, em São Paulo. Outros shows já estão em negociação.

No centro de SP, cidade onde vive há 20 anos entre idas e vindas, Gustavo explicou que o uso contínuo, a decisão de parar com a bebida, entre 2015 e 2016, e a recuperação o deixaram num lugar sombrio, considerando que sua habilidade havia se esgotado. "Eu chorava pensando que tinha queimado todos os meus neurônios. Pensava: 'não consigo mais escrever, só tenho um disco e não vou conseguir viver a minha vida de um disco só'. Foi tema até de terapia. Com quem trabalha e exercita a caneta, aprendi que só escrevendo é que se escreve melhor. Em 2016, aceitei projetos de gente menos conhecida, coisas para o cinema, que não aparecem tanto. Porque eu não estava forma. Mas aceitei de coração. Aí quando vinha uma linha razoável eu já soltava foguete. Essa época foi um período de músicas que não saio mostrando. Mas segui e botei a cara."

Em 2018, se organizou, correu atrás de marcas, tomou cafézinhos, fechou um contrato e negociou com o produtor carioca Papatinho - um dos fundadores da ConeCrew Diretoria, sucesso do rap da cidade nos anos 2000, e hoje em dia nome requisitado (um de seus lançamentos mais recentes é com Anitta e Snoop Dog, a faixa Onda Diferente, possivelmente a melhor de Kisses, novo disco da cantora).

"Assinei o contrato e não tinha nem material, nem ideia, nem plano", diz Black Alien. "Nos dois outros discos eu sentava com cadernos com muitas anotações, era uma beleza. Dessa vez teve que sair na hora, tinha uma pressão de tempo de entrega. O conceito foi surgindo durante a produção." Ele e o produtor sabiam, porém, que as sonoridades passeariam em timbres de jazz e com acenos ao soul e ao blues.

A química entre os dois, que se conhecem há quase 10 anos, se estabelece desde o primeiro beat, e sobre as bases, Black Alien volta a mostrar seu flow marcado, característico, a sintaxe esperta e a mistura única de palavras em inglês e português.

"Estou ficando velho", ri o cantor. "46 anos, já não tenho tempo para questões de ego, 'caôzada', encheção de saco na papelada. Quero gente para trabalhar. Até porque qualquer aborrecimento pode levar para o botequim. Morre gente, nasce gente, fracassei, fiz sucesso, com nada disso eu posso beber. Entrou o Bolsonaro, não posso beber. Não vou ficar me arriscando. O 'embaçamento' (na negociação) é uma das coisas que leva para o botequim rápido. Então escolhi: por aqui não vou. Trabalhar com ele (Papatinho) no estúdio foi muito bom e na hora da burocracia é só tranquilidade."

Embora admita ainda não ter se livrado da maconha (assunto que trata diretamente no disco), ele não demonstra muita paciência para defensores públicos da planta. "Ficam dizendo que é natural… Natural é o c******! Esses bagulhos supersônicos em que os caras jogam um monte de coisa. Toma vergonha, assuma. Diga que fuma maconha porque gosta de ficar doidão e pronto. O bagulho é recreativo. Não tem nada de santo nessa merda", comenta.

Em Carta Para Amy, um dos versos diz: "Eu vim de onde tudo é imediato, tô descalço e no sapato / Quando legalizarem a planta / Qual vai ser o seu assunto? Cara chato!". Antes do repórter dizer qualquer coisa, ele emenda: "Não é para o Marcelo (D2)!", e ri. Os dois foram companheiros por um período no Planet Hemp, banda que ficou célebre por defender a descriminalização da maconha.

"De verdade, ele sabe que não é para ele, até porque ele não fala só disso. Mas pode servir para ele. Se ele ficar puto, vou dizer que serviu, mas ele sabe que não é. O que acontece é que existe um estereótipo que criaram para mim, porque eu fui dessa banda, e vêm com esse papo para cima de mim o tempo todo. Muitas vezes eu vejo pseudoativistas da maconha só para se envolver com o tráfico e ficar fumando e vendendo. Estou falando para essa galera, que também entendeu o recado. Tráfico é tráfico. Não existe tráfico do bem, é um p* de um dinheiro. Agora… eu fumo? Fumo."

Abaixo de Zero: Hello Hell tem 9 faixas e nem todas falam de sobriedade, porém. Vai Baby é uma lovesong sobre uma base inspirada no Kanye West do começo (sample de soul com a voz da cantora num pitch muito alto). Au Revoir, na primeira impressão outra canção romântica, ganha novo significado quando o rapper deixa claro que se trata de amor próprio. Jamais Serão tem um recado claro no refrão: "Presidentes são temporários, baby / Meu despertar, temporão / Música boa é pra sempre / E esses otários jamais serão".

"É um recado sim. Mas eu não quis falar de política aqui. Eu não estava falando disso. Estava no meio daquela merda ali (resolvendo sua sobriedade). Também não vou ficar vendo post como 'Fulano falou isso' e repassar sem saber. Eu sou o Gustavo. Não vou falar sem investigar, fazer telefone sem fio. Eu lá sou babaca? Pessoal sabe nem o que está falando. Só falo o que sei que é verdade mesmo. No disco falei pouco, mas coloco uma opinião. Já o próximo pode ser que eu esteja falando pesadão de política porque vou estar respaldado por uma conversa", garante.

O disco termina com a faixa Capítulo Zero, em que alguém pergunta: "Ei, Black, irmão, onde é que tu vai?". Ao que ele responde, numa despedida de um mundo que habitou por décadas mas agora, reafirma, vai ficar no passado: "Meu cumpade, eu vou embora, Babylon, bye-bye!".

Ouça o disco Abaixo de Zero: Hello Hell, de Black Alien:

Estadão
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