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Autora de ‘A puta religiosa’ diz que escreve com ódio como combustível

Lilia Refle lança seu terceiro livro e fala sobre a polêmica temática da obra

29 mar 2023 - 15h54
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Foto: Divulgação

A escritora Lilia Refle lançará o romance “A puta religiosa”, no dia 1º de abril, no Rio. O livro conta a luta pela sobrevivência de uma jovem negra que deixa para trás as dívidas e uma família desestruturada, no interior da Bahia, para ganhar a vida como garota de programa no Rio. Dividida entre dois mundos, a personagem mantém a fé apoiada no pentecostalismo, em busca de saídas, com a mãe alcoólatra, a irmã caçula dependente química e a ausência paterna. Em pouco tempo, vestindo e se despindo de uma personagem de vida dupla, Sebastiana (ou Penélope) vira a prostituta mais desejada da casa e a preferida de um senador da bancada evangélica.

Esses são o argumento e serviço do novo livro de escritora que se descreve como uma “sobrevivente” - Lilia Refle é caçula de uma família de 17 irmãos, nascida no interior da Bahia. Mudou para o Rio de Janeiro e diz que sua escrita “é feita da dor interna. Escrevo para aliviar a alma, para aguentar a vida. Tem muito a ser dito ainda. Como, no país de todos, o letramento sempre foi privilégio de classe, não bastou sobreviver à fome na infância. Tive que sobreviver à audácia de uma intelectualidade negada, pois preto e pobre só nascem para limpar banheiros. Lutei para chegar aqui. Não sei se sou vitoriosa, mas sim autocrítica e ambiciosa quanto à formação intelectual.”

“A puta religiosa” é  o terceiro livro de Lilia Refle, que lançou outros dois romances ao mesmo tempo, no ano passado: “Inquieta” e “Primeiro amor”. 

Lilia Refle diz que também já tem outros projetos literários encaminhados. O próximo romance será “Nove noites em cada dez gostaria de desaparecer”. “É sobre uma aristocrata alemã que engravida do pai aos 16 anos. Uma menina loira de olhos azuis. Algumas pessoas me perguntaram o porquê de não focalizar sempre a minha escrita no povo negro. Bom, porque me inspiro na alma dos humanos e não acredito que tenhamos uma cor. Apesar de eu, ainda, ter que enfrentar agressões racistas e me determinar sempre negra. Tudo isso vai ficando tatuado na alma. Um prato cheio de inspirações. Sonho com o dia em que os humanos possam ser apenas humanos, e que as suas humanidades estejam acima de qualquer bem material”, reforça a escritora.

Conversamos com ela sobre este, próximo e anteriores trabalhos.

P - É inevitável a pergunta a partir de uma narrativa tão contundente - o quanto é ficção e quanto é realidade vivenciada na obra (não necessariamente por você)?

R - Eu acredito ser a literatura um espelho das partes mais obscuras da alma humana – a sombra de uma realidade negada. Uma forma de dizer o indizível.  Portanto, seria impossível escrever literatura a partir daquilo que não se sabe. E é isso que a Conceição Evaristo nomeia, genialmente, de “escrevivência”. Toda mulher já se sentiu invadida e usada na sua intimidade. O prazer é machista. De forma que os abusos de Jonathas para com Sebastiana foram inspirações daquilo que chamo de síndrome de superioridade masculina, que nem sempre parte dos homens. Mas eles são os únicos beneficiados, sempre. Já a hipocrisia tratada em “A puta religiosa” foi inspirada numa pesquisa de campo de mais de dezenove  anos, quando finquei o pé na Zona Sul carioca. Eu sempre fui muito questionadora e absurdamente crítica. Assim, comecei a observar o que faz com que os casamentos aconteçam e durem na burguesia brasileira. E quando cheguei à resposta (que é)  interesses de classe, me vi obrigada a criar a trajetória de Sebastiana, que, ao contrário das moças do Leblon, é uma puta de alma santa. Uma vítima de toda a estrutura de um sistema político.

 P - Por que um título tão provocativo?

R - Carrego muito ódio no coração, com certeza mais que amor. Eu tenho uma repulsa absurda a certos valores sociais. A moral é esmagadora – a maior de todas as vaidades. Dessa forma, apenas fabulei o que sinto, quando estou jantando com meu marido em um restaurante de luxo e me levanto para ir ao banheiro. Os olhares de homens podem matar a alma de uma mulher. A Sebastiana é negra. E isso foi algo que descobri muito cedo: prostituta é um adjetivo usado com mulheres brancas e bem nascidas. O adjetivo para a mulher preta sempre foi puta.

P - Como é seu processo de criação?

R - É caótico. De repente, sou tomada por um santo, e vem uma coisa que chamam de inspiração. Eu chamo de epifania. Do nada, vem uma visão da realidade acerca de coisas que sempre estiveram diante de mim. E penso: “eu tenho que transformar isso em literatura”. Nunca escrevo uma coisa só ao mesmo tempo. Porque não tenho controle algum sobre as epifanias. “Inquieta” e “Primeiro amor” foram concluídos paralelamente. “Nove noites em cada dez, eu gostaria de desaparecer” deveria ter sido concluído também junto desses meus primeiros romances. Contudo, não consigo terminar. Sento na frente do computador e a epifania transforma-se em dúvidas. Estou na esperança de receber um santo alemão para conseguir encerrar a narrativa de Johanna, a protagonista do romance.

P - Você tem 17 irmãos. Quantos mais caminharam para artes, literatura ou você é a única?

R - Eu tenho 12, agora. Minha mãe perdeu quatro bebês. Recentemente, uma irmã faleceu de câncer no fígado. No contexto em que eu cresci, era insanidade pensar em intelectualidade. Literatura, então, era o suprassumo do devaneio. Mas, quando a minha irmã, oito anos mais velha que eu, passou no concurso público e começou a dar aulas de português e literatura, pensei que insanidade mesmo era viver naquele sistema e não fazer nada para mudá-lo. A loucura seria permanecer ali. Nunca tive uma professora negra no colégio, todas e todos eram brancos. A minha irmã passou no concurso estadual muito antes do primeiro governo Lula. Foi uma audácia sem tamanho.

P - Quais causas ou bandeiras você levanta com seu trabalho? Ou nenhuma?

R - Eu sonho com um mundo no qual o letramento não seja um privilégio de classe. Mas, sim, uma escolha possível. Quando converso com amigos de classe média alta, engraçado pensar que esse adjetivo só existe no Brasil, eles acham que pobre é burro. Cheguei a ouvir de uma amiga, em 2009, que o Brasil não ia para frente porque o atual presidente apostava demais no povo. “O povo é burro. Todo mundo que tem dinheiro vai ter que sair daqui. Nenhum país vai para frente, apostando-se no povo.” Aquilo me chocou tanto e tive a necessidade de tatuar metaforicamente na cara que nunca vi uma classe média tão comprometida com a própria demência. Eu sou a prova viva que ainda se pode sonhar com um mundo minimamente menos desigual. E é isso que me move.

Serviço 

“A puta religiosa”

Editora Astrolábio

74 páginas 

R$ 45,90

Lançamento dia 1 de abril, às 18h

Livraria da Travessa de Ipanema

Rua Visconde de Pirajá, 572, Rio de Janeiro

Cucamonga
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