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Leia trecho de 'Sátántangó', livro do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura 2025

O escritor húngaro László Krasznahorkai, de 71 anos, foi o escolhido pela Academia Sueca; ele só tem um livro publicado no Brasil

9 out 2025 - 13h02
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Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura 2025, o escritor húngaro László Krasznahorkai, de 71 anos, tem apenas um livro publicado no Brasil: seu romance de estreia, Sátántangó, de 1985, que chegou ao País em 2022 pela Companhia das Letras. Confira abaixo um trecho da obra.

A honraria foi concedida ao escritor "por sua obra convincente e visionária que, em meio ao terror apocalíptico, reafirma o poder da arte", conforme anunciou a Academia Sueca, responsável pelo prêmio, na manhã desta quinta-feira, 9.

Sátántangó apresenta uma espécie de assentamento rural húngaro. A trama começa quando os habitantes do local descobrem que um homem, Estike, a quem atribuem poderes extraordinários - "um profeta, um vigarista, ou o próprio demônio" - está chegando ao vilarejo.

Na obra, cada capítulo é construído em um único parágrafo, recurso que intensifica o fluxo de pensamento e o clima de confusão que domina os personagens. A palavra "escuridão" aparece 76 vezes ao longo do texto, reforçando o tom sombrio e denso da história.

Sátántangó, de László Krasznahorkai, vencedor do Nobel de Literatura 2025.
Sátántangó, de László Krasznahorkai, vencedor do Nobel de Literatura 2025.
Foto: Companhia das Letras/Divulgação / Estadão

Já o tradutor Paulo Schiller, que venceu o Prêmio Biblioteca Nacional pela sua tradução de Sátántangó ao português, chamou Krasznahorkai de "Guimarães Rosa húngaro" e disse que ele faz "uma alegoria dos regimes populistas dos nossos dias".

A Companhia das Letras prepara o lançamento de outros dois livros do escritor: O Retorno do Barão de Wenckheim, de 2016, para o início de 2026, e Herschet 07769, de 2021, ainda sem previsão de lançamento.

Leia trecho de 'Sátántangó'

Não era fácil. Em outros tempos ela levava dois dias para decidir onde poria os pés, no que teria de se agarrar, como deveria se esgueirar por aquele buraco à primeira vista irremediavelmente estreito que, na extremidade distante da casa, se abria sob o beiral no lugar onde faltavam algumas tábuas; hoje em dia, naturalmente, tudo levava apenas meio minuto: com movimentos arriscados porém bem escolhidos, ela saltava para o alto da pilha de lenha coberta com uma lona preta, agarrava-se no cano de ferro do esgoto, enfiava a perna esquerda na abertura e fazia com que ela escorregasse para o lado, e, cabeça à frente, com um impulso entrava, com a outra perna dava um chute e se via na parte do sótão que um dia era separada para os pombos, naquele território de um único dono, cujo segredo somente ela conhecia por completo; ali não tinha de temer os ataques inesperados e incompreensíveis do irmão mais velho, e ocupava-se com determinação em evitar que seu distanciamento levantasse suspeitas da mãe e das irmãs, que — se a verdade se revelasse — ordenariam, sem dó, que ela saísse de lá, e a partir de então todo esforço seria inútil. Mas que diferença isso faria naquela hora?! Tirou o capuz de ursinho, molhado, ajeitou o vestido favorito cor-de-rosa de gola branca, sentou-se diante da "janela" e, olhos fechados, trêmula, pronta para fugir, escutou o som da chuva nas telhas. Sua mãe dormia embaixo, na casa, as irmãs não vinham mais nem para almoçar, e assim teve certeza de que de tarde ninguém a procuraria, a não ser Sanyi, que nunca se sabia por onde andava e por isso sempre aparecia de repente, como se buscasse na fazenda a explicação de um segredo ardente que somente desse modo — de súbito, ante um ataque de surpresa — poderia se revelar. Na verdade, não tinha razão para sentir medo, afinal nunca a tinham procurado; ou melhor, tinham ordenado que ficasse longe, em especial quando — o que acontecia com frequência — houvesse um convidado na casa. Acabara numa terra de ninguém, uma vez que não conseguia cumprir nenhuma das exigências: não podia ficar nas proximidades, como também não podia se distanciar, pois sabia que poderiam chama-la a qualquer momento ("Traga, correndo, uma garrafa de vinho!" ou "Traga, menina, três maços de cigarros Kossuth, não vai esquecer?"), e caso deixasse de atender a algum pedido, seria definitivamente expulsa da casa. Restara apenas isso; sua mãe, quando ela voltou "de comum acordo" da escola especial da cidade, a recrutou para trabalhar na cozinha e, pelo receio da censura, os pratos se partiam no chão, o esmalte se soltava das panelas, as teias de aranha continuavam nos cantos, a sopa era insossa, o cozido ficava salgado, até que ela não conseguiu mais executar tarefas simples e não houve saída a não ser afasta-la também da cozinha. A partir de então, seus dias transcorriam numa espera sofrida atrás do granário, ou, se estivesse chovendo, ela se encolhia debaixo do beiral nos fundos da casa porque dali podia observar a porta da cozinha, e embora lá de dentro não pudesse ser vista, ao primeiro chamado podia se apresentar. or conta do estado de alerta permanente, seus sentimentos se desorganizaram: sua visão se concentrava exclusivamente na porta da cozinha, com extrema agudeza e uma sensação de dor lancinante; notava, ao mesmo tempo, alguns de seus detalhes, no alto os dois vidros sujos em que transparecia a cortina de renda presa com tachinhas, o barro seco espirrado sobre a parte de baixo, a linha descendente da maçaneta, numa palavra, a trama totalmente assustadora das formas, cores, traços, e além disso percebia com precisão os diferentes estados da porta da cozinha, numa fragmentação extraordinária do tempo, enquanto tomava consciência dos graus de perigo e das possibilidades de cada instante. Quando, por sua vez, a imobilidade de súbito se interrompia, tudo à sua volta despertava: passavam correndo a seu lado a parede da casa e o arco torto do beiral, a janela voava, à sua esquerda deslizava junto dela o cercado e o jardim florido abandonado, o céu deslanchava, a terra fugia sob seus pés, e ela simplesmente se via diante da mãe ou da irmã mais velha, sem que tivesse percebido a porta da cozinha se abrindo. O instante que levava para fechar os olhos era suficiente para reconhece-las, porque não precisava de mais nada, pois dessa hora em diante, durante muito tempo, as silhuetas escuras da mãe ou da irmã se associavam ao campo dos objetos em movimento, numa certa cegueira sentia que elas estavam lá e que ela estava

diante delas,

embaixo,

como também sabia que assomavam com tamanha força que se uma vez ela as encarasse, talvez a imagem se desfizesse, porque o direito insuportável delas a se imporem era tão evidente que a visão que nela se produziria o faria explodir. O silêncio que até então zumbira, chegava apenas até a porta imóvel onde, em meio ao barulho latejante, tinha de discernir as ordens excitadas da mãe ou das irmãs ("Você me faz ter doença cardíaca! Por que está correndo? Você não tem nada a fazer por aqui! Vá brincar já!") que se extinguiam rapidamente quando ela se distanciava ao voltar correndo para o granário, ou para debaixo do beiral, a fim de que o alívio cumprisse seu papel, pois o que quase acabara, nessa hora poderia de novo prosseguir. Em brincadeira, naturalmente, nem pensar; não que não tivesse ao alcance da mão uma boneca cabeluda, um livro de contos ou uma bola de gude, com que — se um estranho aparecesse no quintal, ou se lá de dentro elas lançassem um olhar controlador sobre ela — poderia fazer de conta que brincava, embora pela prontidão permanente não tivesse coragem, nem seria capaz, fazia um bom tempo, de se entregar a nenhuma brincadeira. Não só porque as coisas apropriadas para isso eram determinadas pela paixão momentânea do irmão mais velho, que delimitava impiedosamente quais e por quanto tempo poderiam ser usadas, mas porque brincava como se fosse uma obrigação, por defesa pessoal, para corresponder às expectativas da mãe e da irmã mais velha, que — ela bem sabia — preferiam tolerar que ela não fizesse questão "dos brinquedos apropriados para a idade", em vez de passarem pela vergonha de ("Se pudesse!") terem, dia após dia, "doentiamente observados e espreitados todos os nossos movimentos". Sentia-se segura apenas em cima, no lugar de descanso ocasional dos pombos; lá não tinha de brincar, não havia porta pela qual se "pudesse entrar" (seu pai a pregara, nos primeiros passos do plano para que tudo ficasse para sempre no escuro), não havia janela pela qual "se pudesse olhar para dentro", e na janela dos pombos, proeminente no teto, ela mesma prendera com tachinhas duas fotografias coloridas tiradas de jornal para que "a vista fosse bonita": uma delas representava uma paisagem de beira-mar ao pôr do sol, e na outra se viam picos nevados, com um alce que os observava em primeiro plano… Claro que tudo acabava sempre! Um vento a golpeou vindo da escadaria que se abria no piso e ela estremeceu. Apalpou o capuz de ursinho, mas ele ainda não havia secado, e em vez de descer até a casa e acordar a mãe para pedir uma roupa seca, estendeu sobre si um de seus tesouros mais preciosos, a cortina de renda branca salva das quinquilharias amontoadas no fundo da cozinha. Essa coragem ela teria considerado inimaginável um dia antes: se tivesse se encharcado na véspera, trocaria de roupa de imediato, pois sabia que se adoecesse e caísse de cama, não se conteria, e a mãe e as irmãs não conseguiriam suportar a choradeira. Mas como poderia suspeitar ainda na manhã da véspera que, como numa explosão que em vez de provocar um desabamento construísse alguma coisa, de noite, purificada se entregaria ao sono com "uma crença sedutora na dignidade". Alguns dias antes já percebera que tinha acontecido algo a seu irmão mais velho: segurava a colher de modo diferente, fechava a porta atrás de si de outra maneira, se sobressaltava a seu lado na cama de ferro da cozinha, e durante o dia refletia com intensidade sobre alguma coisa. Na véspera ele se juntara a ela perto do beiral, mas em vez de ergue-la pelos cabelos ou — o que seria pior — parar atrás dela mudo até que ela caísse no choro, tirou do bolso meio pedaço de Balaton e o enfiou na mão dela. Estike não sabia a que atribuir aquilo, e além disso desconfiou de algo ruim quando de tarde Sanyi dividiu com ela "o segredo mais fantástico que já existira". Não duvidou das palavras do irmão, nunca o faria, achava muito mais inacreditável e inexplicável que Sanyi envolvesse exatamente a ela, que pedisse justo a ajuda dela, "com quem não se podia contar de verdade". Mas a esperança de que não se trataria de mais um conflito foi mais forte que a angústia; assim, antes que se pudesse revelar a verdade, ou melhor, para que ela jamais pudesse ser revelada, Estike — sem restrições e com a velocidade de um raio — concordara com tudo. Claro que não podia fazer diferente, Sanyi a obrigaria ao "sim", embora dessa vez isso não fosse necessário: ao escancarar diante da irmã o segredo da árvore de dinheiro, ganhara a confiança ilimitada de Estike.

Sátántangó

  • Autor: László Krasznahorkai
  • Tradução: Paulo Schiller
  • Editora: Companhia das Letras (232 págs.; E-book: R$39,90)
Estadão
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