Na rota do Oscar: como o cinema está refletindo os conflitos no mundo em 2025?
Obras que falam sobre conflitos globais se destacam na disputa por vaga no Oscar de melhor filme internacional - mas divergem na forma de abordar o tema
A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo selecionou 374 títulos para a sua 49ª edição. Foram 80 países e múltiplos gêneros cinematográficos contemplados, entre dramas de guerra, histórias de amadurecimento, reflexões sobre corpo e gênero e todo tipo de narrativa e experimentação.
Além de permitir um contato de público e crítica com as ondas recentes globais, eventos como a Mostra oferecem uma visibilidade que muitos filmes não encontram no circuito comercial tradicional. Entre obras independentes que demoram a ganhar lançamento, há espaço também para títulos badalados - no ano passado, por exemplo, a Mostra exibiu Anora, Ainda Estou Aqui, O Brutalista e o documentário Sem Chão, todos premiados no Oscar 2025.
Neste ano, 16 pré-selecionados para o Oscar 2026 de melhor filme internacional estiveram na programação, alguns deles entre os fortes concorrentes à disputa, e que devem crescer em repercussão e notoriedade nos próximos meses. E embora os filmes, naturalmente, sejam divergentes entre si, é possível observar que alguns temas parecem ser mais urgentes.
As transformações do cinema em conflito
Filmes que refletem sobre as tensões em ebulição no mundo aparecem com força. Mas a novidade não é o tema, e sim o formato de abordá-lo.
Sirât, o espanhol que abriu a Mostra, mergulha o espectador em como o colapso climático e a crise de refugiados nos afetam globalmente. O badalado Foi Apenas um Acidente, do iraniano Jafar Panahi, questiona a escalada de violência e os conflitos éticos e morais da guerra. A generosa seleção de filmes palestinos ou que abordam questões ligadas à causa, de Notas sobre um Desterro a Era uma Vez em Gaza e Palestina 36, evidencia uma preocupação de se discutir um assunto pertinente para os tempos contemporâneos.
Já o brasileiro O Agente Secreto, que também se passa em uma situação de conflitos políticos da ditadura e acompanha um personagem que foge de seu passado misterioso, vai pelo lado da perda da memória coletiva e dos registros históricos. Outro concorrente, o iraquiano O Bolo do Presidente, acompanha uma criança de 9 anos que precisa descobrir como preparar um bolo obrigatório para o aniversário do presidente, caso não queira enfrentar a prisão ou a morte.
Para o crítico Bruno Carmelo, o que a força desta seleção informa é que, para o audiovisual, não basta mais apenas reproduzir os conflitos de maneira direta. "As produções recompensadas em grandes festivais têm sido aquelas capazes de aplicar códigos do cinema de gênero aos contextos de opressão", diz ao Estadão. "A comédia do absurdo, a fábula, o suspense e o horror têm transmitido muito melhor os contextos de violência do que dramas diretos, que convidem o espectador a lamentar a tristeza de países vizinhos."
Segundo ele, as novas percepções já são sentidas no prêmio da Academia, que agora passa a valorizar filmes que não eram tão reconhecidos anteriormente.
"Quinze anos atrás, qualquer denúncia melodramática da guerra, especialmente se trouxesse crianças em papéis centrais, tinha indicação garantida. Hoje, é mais difícil apontar o que seria um filme com 'cara de Oscar', porque as linguagens se diversificaram. Produções ousadas como Sirât e O Agente Secreto sempre existiram, mas não eram valorizadas pela Academia."
Essa versatilidade se aplica tanto a formato quanto a gênero. Obras como Bugonia, de Yorgos Lanthimos, e o coreano No Other Choice, de Park Chan-wook, encontram uma veia cômica para trabalhar as crises do mal-estar do século 21. Já o alemão O Som da Queda e o taiwanês A Garota Canhota utilizam táticas diferentes para elaborar tratados do desafio de existir enquanto mulher na sociedade ao longo do tempo.
"O que todos esses filmes têm em comum é uma postura de urgência em como esses temas são abordados. Um sentimento de necessidade de confrontar e ser frontal quanto ao estado do mundo que vivemos no agora", analisa o crítico e cineasta Diego Quaglia, que destaca Foi Apenas um Acidente como o filme que melhor cumpre o desafio.
"Ele usa de modo econômico, mas preciso, todos os alicerces da linguagem do cinema para ressaltar sua denúncia e mostrar o horror de um governo autoritário de teor reacionário", afirma. "O filme aponta o dedo para a sua denúncia sem contornos, mas faz isso de maneira muito inteligente, percebendo toda uma humanidade muito equilibrada que deixa sua denúncia mais palpável."
Novas percepções para o Oscar?
É evidente que ainda há um longo caminho para o Oscar 2026, marcado para o dia 15 de março, mas as apostas preliminares já apontam para alguns fortes concorrentes. O brasileiro O Agente Secreto está entre os que despontam com força entre as possibilidades, junto a Foi Apenas um Acidente (França), No Other Choice (Coreia do Sul), Valor Sentimental (Noruega) e A Voz de Hind Rajab (Tunísia), além de Sirât (Espanha), A Garota Canhota (Taiwan) e O Som da Queda (Alemanha), que também podem crescer.
A força, para a roteirista e curadora de cinema Carissa Vieira, está na versatilidade, que deixa à mostra os pontos fortes e fracos de como cada obra escolhe analisar os temas mais atuais.
"Ver tantos filmes que retratam o mundo em conflito reflete o quanto o cinema é uma ferramenta de registro, denúncia e debate. O Agente Secreto pega o passado para pensar o hoje, e faz isso usando elementos variados do cinema de gênero, e ainda inclui o humor na narrativa. Ao mesmo tempo, um dos filmes mais divisivos da edição, Sirât, me incomoda por não pontuar com mais firmeza as questões políticas que perpassam o local onde o filme se passa [o Marrocos]. E não trazer o peso da influência da própria Espanha, seu país de origem, no conflito que existe naquela localidade", contrapõe.
Nos últimos anos, desde a vitória histórica de Parasita, prever o Oscar já não é mais uma tarefa tão fácil quanto já foi. A julgar pelo cenário que se desenha, o Brasil deve enfrentar concorrentes fortes, caso realmente seja indicado. Para Carmelo, a crise de identidade da premiação joga a favor dos filmes internacionais, que tendem a ganhar mais destaque e sedimentar ainda mais sua relevância.
"Trata-se de uma premiação criada pela indústria americana, para recompensar a si própria. Entretanto, face à crise econômica e a queda brutal das bilheterias pós-pandemia, além da importância crescente das produções internacionais nas salas de cinema e no streaming, não é possível ignorar a relevância destes filmes estrangeiros no mercado", aponta.