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Jafar Panahi, premiado em Cannes, rejeita rótulo de cineasta político: 'Só sei fazer filmes'

Em São Paulo para receber homenagem pela 49ª Mostra Internacional de Cinema, realizador iraniano que venceu a Palma de Ouro com 'Foi Apenas um Acidente' fala ao 'Estadão' sobre repressão, retribuição e fazer cinema social com temas políticos

27 out 2025 - 12h10
(atualizado às 16h56)
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Durante 15 anos, o cineasta iraniano Jafar Panahi foi preso, vendado, interrogado e proibido de sair do próprio país e de filmar. Isso, é claro, não impediu que ele continuasse rodando seus filmes e os enviando para festivais mundo afora.

Neste período, Panahi foi uma espécie de presença ausente no mundo do cinema. Durante anos, o Festival de Cannes manteve uma cadeira vazia para ele como forma de homenagem e protesto. Seus filmes clandestinos receberam prêmios como o Urso de Ouro em Berlim (Táxi Teerã, 2015) e o Prêmio Especial do Júri em Veneza (Sem Ursos, 2022), nenhum dos quais ele pôde buscar pessoalmente.

Sua volta triunfal aos tapetes vermelhos aconteceu neste ano, com Foi Apenas um Acidente, vencedor da Palma de Ouro que também trouxe o realizador até São Paulo, onde recebe em mãos o Prêmio Humanidade da 49ª edição da Mostra de Cinema de SP.

Uma das primeiras imagens de Panahi em São Paulo, que começou a circular em redes sociais no sábado, 25, à tarde, mostra o diretor sentado próximo à entrada de uma estação de metrô da avenida Paulista, fumando um cigarro calmamente, despercebido pela multidão que ocupa a calçada. Curiosamente, quando a reportagem chegou ao hotel para a entrevista com o cineasta no domingo pela manhã, o primeiro encontro foi também com ele do lado de fora do prédio, com seu cigarro na mão, conversando despreocupado enquanto acompanhava o movimento da rua.

Foi Apenas um Acidente

Na história, o mecânico Vahid (Vahid Mobasheri) encontra por acaso o homem que acredita ter sido seu torturador na prisão, e o sequestra decidido a se vingar. Mas a única pista sobre a identidade de Eghbal (Ebrahim Azizi) é o som peculiar de sua perna protética. Vahid então recorre a um grupo de outras vítimas libertas em busca de confirmação, mas o perigo só aumenta. Enquanto enfrentam o passado e suas visões de mundo divergentes, o grupo precisa decidir: será realmente ele, sem dúvida alguma? E o que significaria, na prática, a retribuição?

O longa terá três sessões para o público na Mostra SP, e todas contarão com a presença do diretor. A estreia em circuito será em 4 de dezembro, em uma parceria entre Mubi e Imovision.

Relembre a prisão e a perseguição

Panahi passou sete meses preso em 2022, quando foi até a prisão de Evin, no Teerã, questionar a detenção do colega Mohammad Rasoulof - diretor de A Semente do Fruto Sagrado, e que fugiu a pé do Irã por ter sido condenado a prisão, confisco dos bens e chibatadas. O longa concorreu ao Oscar de melhor filme internacional em 2025, representando a Alemanha.

O cineasta e roteirista iraniano Jafar Panahi, em São Paulo para ser homenageado pela 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com o filme 'Foi Apenas um Acidente'
O cineasta e roteirista iraniano Jafar Panahi, em São Paulo para ser homenageado pela 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com o filme 'Foi Apenas um Acidente'
Foto: Tiago Queiroz/Estadão / Estadão

O cineasta foi liberto em fevereiro de 2023, após uma greve de fome, e seu novo filme nasce desta experiência. Os personagens que participam da história são inspirados em pessoas reais que ele conheceu em seu tempo na prisão, e nos quais ele pensava sempre que passava em frente ao local depois disso, a caminho da casa de sua mãe. E, embora pudesse pedir autorização ao Irã para executar o filme dentro das normas, optou por fazê-lo de forma clandestina, assim como seus projetos anteriores. Em determinado momento, teve sua equipe detida e interrogada. Após as filmagens, a pós-produção foi toda realizada em Paris.

"Foi Apenas um Acidente não é um filme político, é um filme social que tem temas políticos", diz o diretor, que recusa o rótulo de cineasta político e prefere dizer que faz um cinema socialmente engajado. Para ele, questionar os sistemas sociais e governamentais vigentes é olhar para o futuro e pedir para que a violência, um dia, acabe.

"Essa violência que existe agora vai continuar? Estou pensando para frente, e não no contexto de hoje", explica, em farsi, por meio de uma intérprete. "E acredito que é sobre isso que precisamos refletir, porque em algum momento essa violência precisa parar. Temos que pensar desde agora no que vai acontecer quando os governos atuais passarem."

Na conversa abaixo, editada para melhor clareza, Panahi fala sobre sua paixão por fazer cinema, o simbolismo do novo filme para o Irã e o que significa criar arte em sistemas de repressão. Confira.

O senhor ficou muitos anos sem poder sair do Irã ou conceder entrevistas, e agora pode viajar com 'Foi Apenas um Acidente', e até estar no Brasil. Como está sendo essa jornada?

É prazerosa. Para um cineasta, o que importa é que mais gente, mais gente, mais gente consiga assistir ao filme dele. Então, é um prazer. O filme já está feito. O cinema faz filmes para que eles sejam assistidos. Quando ninguém assiste, qual o benefício, qual a vantagem? Isso mostra um entusiasmo. Sinto um grande prazer e fico muito alegre por poder fazer isso e estar aqui.

O senhor já disse que se considera um cineasta "socialmente engajado", e não um cineasta "político". Por que é necessário fazer essa distinção?

Você quer conhecer o Jafar Panahi de dentro do filme ou o Jafar Panahi na vida? Fora dos meus filmes, como uma pessoa iraniana no Irã, eu sempre sou uma pessoa política, claro. Como eu vejo as coisas, sei o que está acontecendo.

Mas nos filmes sociais, você pode trabalhar todos os temas. Neles, o que importa são os seres humanos e a visão que o público tem dos seres humanos. Não existe, nesse tipo de história, ser humano perfeitamente bom ou completamente ruim. Isso é construção. São os objetos e condições de cada lugar que fazem a pessoa parecer boa ou ruim, diante das situações. Quando a gente observa melhor, percebe que é bem diferente dos filmes políticos.

Querendo ou não, o significado de cada um desses tipos é completamente diferente. Nos filmes políticos, sempre separam "ser humano bom" de "ser humano ruim". É igual em filmes de partidos. "Quem está a favor do meu político é uma pessoa boa, quem está contra o meu político é um ser humano ruim". Em cinema social, não existe essa diferença.

Fazer um filme desta forma permite a cada um que diga suas falas. É por isso que Foi Apenas um Acidente não é um filme político, é um filme social que tem temas políticos. Um filme pode pegar um tema de guerra mas não ser uma obra de guerra, por exemplo, porque filmes de guerra têm características muito específicas. Então você, como cineasta, tem que escolher a sua responsabilidade e o melhor caminho a seguir.

Fazer cinema hoje é um ato político, mesmo que o filme não seja socialmente engajado?

Com as redes sociais da atualidade tão presentes e influentes, tudo está acontecendo no mesmo instante, as coisas são muito momentâneas. E o impacto dos acontecimentos também é passageiro, tende a ficar sempre no presente.

Mas um filme tem um processo mais lento e reflexivo, de dois ou três anos, e ele pode servir como uma memória histórica. Por meio de um filme, no futuro, nós poderemos saber o que aconteceu [no passado].

Os seus filmes costumam partir de gestos pequenos que revelam sistemas inteiros de opressão. Em Foi Apenas um Acidente, o que esse acidente simboliza para o Irã de hoje?

Foi Apenas um Acidente é um filme que se passa no presente, mas ele é sobre o futuro. O que vai acontecer no futuro? Essa violência que existe agora vai continuar? Então, estou pensando para frente, e não no contexto de hoje. E acredito que é sobre isso que precisamos refletir, porque em algum momento essa violência precisa parar. Temos que pensar desde agora no que vai acontecer quando os governos atuais passarem.

Achei muito interessante que passamos quase o filme inteiro sem ver Eghbal, assim como aqueles personagens não o viam na prisão. E então temos aquela cena da árvore, em que a câmera fica presa nele. Qual é a importância de termos também esse ponto de vista?

Ao longo do filme, todos os outros personagens falam sobre este homem, mas ele não está lá, é como se ele não existisse. Ele está ausente. Ali no final, é o oposto: ele existe e os outros não. É como se o filme estivesse contando a história em duas partes, em uma ele existe e na outra não existe. Agora que você deu um senso justiça para todo mundo falar, na parte principal do filme, fazer o justo é deixar também que ele fale.

Neste momento, você tem a imagem fixa em uma pessoa que não era presente antes no filme, enquanto outros estão andando ao redor, indo e vindo, mas sem aparecer completamente em cena. Isso também volta para a questão do cinema social que falamos antes. Nós devemos olhar para todas as pessoas com os mesmos olhos. É isso que o separa do cinema político.

Jafar Panahi, em São Paulo: 'Nós devemos olhar para todas as pessoas com os mesmos olhos. É isso que separa Foi Apenas um Acidente do cinema político'
Jafar Panahi, em São Paulo: 'Nós devemos olhar para todas as pessoas com os mesmos olhos. É isso que separa Foi Apenas um Acidente do cinema político'
Foto: Tiago Queiroz/Estadão / Estadão

Durante o Festival de Cannes, o senhor disse que o Irã te ajudou a fazer este filme ao transformá-lo em prisioneiro. Você acredita que a repressão acaba gerando mais arte e resistência?

Isso depende do regime sob o qual um filme é feito. De quando o filme é realizado, se em um governo que não aceita outras visões além da própria ou em um lugar em que todos podem falar a sua opinião.

Mas cada país tem esse tipo de situação. Você olha para o Brasil, vocês viveram uma ditadura, com todas as suas dificuldades para fazer cinema. Eu não sei muito bem o que aconteceu no seu País, mas sei que vocês também passaram o mesmo que nós estamos passando agora. E também há alguns países que agora não têm problemas, mas que podem ter no futuro. Isso pode acontecer em qualquer país, China, Rússia, EUA. Mas é importante considerar como o artista pensa, na hora e no momento da situação.

Foi Apenas um Acidente questiona se vale a pena perder a humanidade para se vingar de um opressor. É possível falar em justiça verdadeira em uma situação como essa?

A questão é que essas pessoas não queriam cometer atos de violência. Elas foram presas porque tiveram seus direitos violados e fizeram exigências, e por isso terminaram na prisão. Então, elas caíram em atos de violência porque não foram tratadas de forma humanitária. Como eles, eu também não fui tratado de forma humanitária. Foi desumanidade. Foram torturados e julgados. É claro que na prisão ninguém te oferece um café, você é sempre tratado com violência e há muito sofrimento, e isso marca. Deixa um trauma na vida.

Depois de tudo o que viveu, com prisão e censura, o senhor permanece no Irã e continua a fazer filmes em seu próprio país. Por que continuar lá?

Porque eu não sei fazer mais nada além disso. Eu só sei fazer filmes. Por isso fico no Irã. Se eu sair de lá, não sei mais o que fazer.

Estadão
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