Clássico do Dia: Em 'Tudo o que o Céu Permite', Douglas Sirk queria dar voz ao outro
Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este em que o diretor se vale justamente das convenções - do melodrama - para subverter a ordem restabelecida
Rainer Werner Fassbinder e Todd Haynes, dois luminares do cinema autoral, fizeram filmes assumidamente influenciados por Douglas Sirk. Jacques Lacan e Judith Butler analisaram questões de linguagem e de gênero a partir do cinema de Sirk. Nascido na Dinamarca (Detlef Sierck), criado na Alemanha, ele dirigiu o Kleines Theater de Hamburgo.
Fez sua formação nos clássicos, iniciou uma carreira no cinema. Dirigiu a lendária Zarah Leander em La Habanera, de 1937. Fugiu do nazismo e se exilou nos EUA. Lançou-se a uma ambiciosa adaptação de Chekhov - O Que Matou por Amor, baseado em Um Acidente de Caça, ou Um Drama na Caça -, mas se exercitou preferencialmente no cinema popular.
Fez policiais como O Capanga de Hitler e Vidocq, a comédia Sinfonia Prateada, que marcou a estreia de James Dean, até um western, Herança Sagrada, sobre Taza, o filho de Cochise, mas deve sua glória, um tanto tardiamente, ao ciclo de melodramas que iniciou em 1953. Seis adquiriram fama e o retiraram do limbo dos diretores de soap operas, quase sempre desprezados pela crítica. Quatro são interpretados por Hudson (Sublime Obsessão, Tudo o Que o Céu Permite, Palavras ao Vento e Almas Maculadas), e os dois restantes por John Gavin (Amar e Morrer e Imitação da Vida). O último, de 1959, foi um memorável sucesso de público. Termina com um funeral.
Logo em seguida, Sirk ficou doente, precisou de um ano sabático. Nunca mais voltou a Hollywood. Chegou a preparar um filme que queria muito fazer - na França. The Streets of Montmartre, com roteiro de Ionesco, seria uma cinebiografia de Utrillo, baseada na relação do pintor com a mãe, Suzanne Valadon, que também era pintora. Mas aí o mundo e o cinema começaram a mudar. Sirk, de alguma forma, sentiu que não havia mais espaço para ele. Radicou-se na Europa, dirigiu teatro, deu aulas. Morreu em 1987, em Lugano, na Suíça, aos 89 anos, transformado em objeto de estudos acadêmicos nos dois lados do Atlântico. O interesse de Haynes por ele veio por meio de Lacan. Fassbinder não precisou de intermediários. Dizia que assistir aos filmes de Sirk levou-o pelos caminhos do desespero humano.
Podia estar falando de Tudo o Que o Céu Permite. Jane Wyman faz viúva endinheirada, mãe de um casal de filhos adultos. Logo no começo a filha, numa conversa acidental, observa que, no antigo Egito, as mulheres dos faraós eram lacradas nas tumbas, com os pertences reais, quando os maridos morriam. Dessa maneira a filha está traçando uma linha de conduta para a mãe. Não leva em consideração que Cary Scott, seu nome, possa ter necessidades afetivas e sexuais. Todo o meio social que frequentam compartilha a mesma preocupação por bens materiais e pela aparência. Cary, carente, termina por se envolver com o jardineiro, o que c onstitui dupla transgressão. Ron Kirby não apenas é mais jovem como pertence a um estrato inferior.
É interpretado por Rock Hudson, um grande astro e o galã da empresa produtora e distribuidora Universal, além de haver sido o ator preferido de Sirk durante toda uma fase de sua carreira. Anos depois, quando a verdade veio à tona, o mundo descobriu o que, internamente, a indústria já sabia.
Hudson era gay, ficou soropositivo, morreu em consequência de complicações decorrentes da aids. Aos olhos do público, fazia jus ao nome. Rock, de rocha. No livro com a entrevista que deu a Jon Halliday, Sirk on Sirk, o diretor diz que Hudson era como John Wayne. Nem querendo seria possível transformá-lo num homem vacilante. Era indestrutível, verdadeira fortaleza, física e moral. Isso não tinha nada a ver com a realidade, mas com a persona que Hudson, graças aos fimes, logrou construir no imaginário do público.
O espectador que assiste ao filme na atualidade poderá se perguntar, diante de certas cenas, se Sirk não estaria querendo mandar um recado subliminar. Como jardineiro, Ron é um homem ligado à natureza. Cultiva as flores, alimenta os veados. É quase uma desconstrução da rocha, mas o carisma, a tranquila segurança que emanam de Hudson permanecem intactos. Há toda uma pressão da família, da amiga, para que Cary abra mão dessa história que parece absurda. A cena do clube de golfe é o ponto alto dessa representação social baseada na ostentação. Uma pergunta torna-se insistente - "Você não o ama de verdade, não?" Cary termina por desistir e aí Sirk cria a cena da festa de Natal para expor a tirania familiar.
Ela ganha de presente uma TV, que começava a entrar nos lares norte-americanos. A filha espera que a TV seja um substituto para as necessidades da mãe. Uma imitação da vida, como o título do filme final do diretor. Cary não liga o aparelho, mas sua imagem se reflete na tela, como a esposa do faraó, finalmente emparedada com ele. O mundo das convenções parece ter vencido, mas Sitrk se vale justamente das convenções - do melodrama - para subverter a ordem restabelecida. Ocorre um acidente, e grave. Ron fica à beira da morte e Cary revisa sua prioridade. A última cena é de novo um reflexo. O rosto dela no vidro, a paisagem. Um livro, Walden, ou A Vida nos Bosques, de Henry David Thoreau.
Em depoimento a Halliday, Sirk contou que todo mudo - o produtor, o estúdio - queria cortar a referência ao livro. Não significava nada para ninguém. Significava para ele. Sirk contava o impacto que a leitura de Walden teve em sua juventude. Ergueu-se um mundo que lhe pareceu puro. Face ao horror do nazismo, migrou para os EUA cheio de esperança. Teve sucesso, mas decepcionou-se profundamente com o tipo de sociedade que encontrou. Tudo o Que o Céu Permite é a sua antítese do rousseaunismo moderado de Thoreau e da sociedade norte-americana estabelecida da época. O que estava sendo perdido. Um ideal de vida simples, de contato com a natureza. Ron traz isso para a vida de Cary. Assim como Thoreau, que combatia a sociedade industrial, a relação com Ron descortina para Cary um outro mundo, no qual o importante é o afeto, não a acumulação capitalista - de objetos e dinheiro. À revista Cahiers du Cinéma, Sirk declarou - está no verbete que Jean Tulard lhe dedica no Dicionário de Cinema - "Meu ideal é a tragédia grega, em que tudo se passa em família, num mesmo lugar. E essa família é idêntica ao mundo, é o símbolo desse mundo.
A Halliday, justificando seu interesse pelo melodrama, Sirk confessou que seu farol era Eurípedes, no último coro de Alceste, quando os deuses são invocados como testemunhas de uma causa 'insignificante', a da humanidade. Sirk não acreditava no happy end, mas foi muitas vezes obrigado a adotá-lo, para servir ao gênero. Encontrou sua forma particular de trasnsformá-lo em deus ex-machina. Filmava o triunfo do amor, mas sem acreditar nele. Outra norma, da qual nunca abriu mão. Acreditava que toda história precisava de um protagonista secretro. Embora focado nos problemas da mulher, esse protagonista, em Tudo o Que o Céu Permite, é o jardineiro. Ela vacila, ele permanece firme.
Para se manter num tema na ordem do dia, em Imitação da Vida, com base no romance água com açúcar de Fannie Hurst, Sirk afronta o racismo, na fase anterior às lutas por direitos que se intensificaram nos anos 1960. A estrela branca, Lana Turner, e a doméstica negra, Juanita Moore. A filha da segunda, Susan Kohner, que se faz passar por branca (e é a protagonista secreta do filme). O filme não propõe só uma tomada de consciência dos brancos liberais, mas dos negros também. Foi o que Lacan, Judith Butler descobriram e ressaltaram. Todos levam vidas de imitação. Sirk ironizava o que parecia o próprio final feliz. Dizia que a estrela voltaria a representar, o marido com quem se acertava arranjaria alguma amante e a filha, ao se casar, levaria uma vida sem afeto num condomínio de luxo, e isso era a 'América'. Na verdade, ao afirmar que em seus filmes procurava a antítese, o que ele queria dizer é que dava voz ao outro, e esse permanece o grande desafio.
A possibilidade e, mais que isso, a necessidade de que o outro desenvolva sua narrativa é cada vez mais necessária face às desigualdades sociais, raciais e de gênero, que continuam longe de ser resolvidas. Seus discípulos levantaram a bandeira. Toda a obra de Fassbinder é um convite à investigação da dor humana, àquilo que ele chamava de angústia - ou medo - que corroi a alma. E Haynes, em Longe do Paraíso, faz com que Julianne Moore descubra que o marido, um esteio da sociedade, leva vida dupla e é gay.
Quando ela, no limite de sua carência, tem um affair com o jardineiro negro, ele usa da violência para enquadrá-la. Como marido, acha que tem direito de ser quem é e exige que ela não comprometa sua posição social. Sirk, como grande artista, teria aprovado o apocalipse doméstico. Seus suntuosos melodramas são extremamente críticos em relação à ideologia de classe da burguesia. A última cena que filmou foi um funeral, com pompa e circunstância. No seu cinema, o mundo de aparência está condenado.