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Clássico do Dia: 'Carta de uma Desconhecida' permitiu maturar o estilo pessoal de Max Ophuls

Todo dia um filme será destacado pelo crítico do 'Estado', como este em que Joan Fontaine interpreta uma mulher que coloca o amor acima de tudo e deixa o coração falar mais alto em sua vida

28 jun 2020 - 05h12
(atualizado em 28/10/2020 às 19h49)
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No Dicionário de Cinema, Jean Tulard chama-o de mais cosmopolita dos diretores. Max Ophuls nasceu em Sarre, que ainda era independente, mas foi anexado à Alemanha. Naturalizou-se francês, filmou na Itália, na França e no Japão, antes de migrar para os EUA. Voltou à França e, em 1955, no auge da política dos autores, fez o filme que François Truffaut considerava um monumento de cinema, Lola Montès. A história da ascensão e queda da cortesã amante do rei Ludwig I, da Baviera, é recriada como espetáculo circense, com direito a mestre de cerimônia, formato cinemascope e amplos recursos de produção.

Anunciado como evento por Cahiers du Cinéma, o filme fracassou na bilheteria. Foi remontado pelos produtores, na tentativa de torná-lo mais acessível. Passou de 140 min a 110 min e a 90 min. Seguiu rejeitado pelo público, que não assimilou o caráter excessivamente barroco, a narrativa fragmentada, a atriz inadequada - além de pouco talentosa, Martine Carol atraía um tipo de espectador tradicional, o do cinema de papai, que Truffaut ironizava (e certamente não era o de Ophuls). O cineasta entrou em depressão, só conseguiu dirigir uma ópera - As Bodas de Fígaro - dois anos depois, e foi o fim. Teve um colapso. Morreu em 1957, aos 55 anos. Contrariando Truffaut, a obra-prima de Ophuls é Madame De..., de 1953, lançado no Brasil como Desejos Proibidos. E, se a fase hollywoodiana do autor teve algum significado - e teve, imenso - foi que especialmente A Carta de Uma Desconhecida, de 1948, permitiu-lhe maturar o estilo pessoal que o tornou cultuado.

Ophuls adquiriu a reputação de cineasta da valsa, um pouco pelos filmes ambientados na romântica Viena do século 19, mas também pelos travellings que eram sua marca. Um de seus maiores admiradores foi Stanley Kubrick, que lhe pagou tributo em dois de seus clássicos, o drama de guerra Glória Feita de Sangue e a fantasia científica 2001, Uma Odisseia no Espaço. Kubrick recriou com o balé de seus foguetes e estações orbitais a vertigem dos movimentos de Ophuls - e até usou a valsa, de Strauss. Admirava-o ainda mais por, de dentro do romantismo aristocrático e burguês, operar a destruição do segundo. Ophuls teve seus grandes momentos nos anos 1930 e 40, mas algo realmente ocorreu quando se voltou para Stefan Zweig.

The ultimate women's picture. Howard Koch, um dos roteiristas premiados com o Oscar por Casablanca, de Michael Curtiz, é quem assina a adaptação. Em Viena, caprichosamente reconstituída em estúdio - uma Viena estilizada e onírica -, Joan Fontaine faz essa mulher que coloca o amor acima de tudo e deixa o coração falar mais alto em sua vida. Representa a mulher apaixonada e o tema é visceral no cinema de Ophuls, embora o seu interesse fosse a discussão sobre a diferença de perspectivas. O objeto da devoção de Lisa é um pianista que, no passado, foi promissor, mas se transformou num cínico que agora tenta fugir de um duelo de honra com o marido traído de uma amante ocasional. Seu nome é Stefan e é nessa hora que ele recebe a carta do título. A desconhecida é Lisa, com quem teve um breve romance quando ela era muito jovem (e impressionável).

Por causa dele, Lisa abdicou de tudo. Abandonou um pretendente, desistiu de um casamento que poderia ter sido feliz e, como trabalhadora, depois de viver em Linz, voltou a Viena só para poder estar próxima dele, mesmo à distância. Reencontram-se, e ela acredita que Stefan a reconheceu, mas tardiamente descobre que o sedutor barato apenas usou as mesmas frases vazias que emprega com todas as mulheres. Essa diferença de perspectiva é que cria a tragédia no cinema de Ophuls. As mulheres amam, os homens querem sexo. Lisa engravida, cria o filho sozinha, ele morre de febre tifóide. Cada etapa dessa trajetória de acasos é marcada pelo movimento. O trem vira metáfora do destino, levando e trazendo essa mulher, conduzindo seu filho para a morte. A crítica Pauline Kael exasperava-se. Dizia que Joan Fontaine sofre até mais não poder, mas de uma forma tão elegante que desarma o espectador. Não sabemos mais se cobrimos de pancada a pobre criatura traída ou se damos o braço a torcer, e choramos. No limite, a mulher que tanto perdeu termina por triunfar. A carta, escrita quando ela está morrendo, confronta Stefan com seu fracasso humano e artístico. E, dessa vez, em buscas da dignidade perdida, ele não faltará ao que poderá ser o último duelo.

Apesar de todas as diferenças entre eles, Ophuls tinha muito em comum com Josef Von Sternberg, o criador do mito de Marlene Dietrich, e Douglas Sirk, o mestre do melodrama que tanto atraiu Rainer Fassbinder e Judith Butler, Todd Haynes e Jacques Lacan. Os três chegaram à direção com pleno domínio da cenografia. Eram construtores de sets, de imagens, de mundos. Formados na Alemanha, alimentados pelo expressionismo, fizeram a passagem para o impressionismo - a fascinação de Ophuls pela Belle Époque foi fundamental - e chegaram ao barroco. Com suas lentes e travellings, cenários e figurinos, tudo muito bem embalado em música, Ophuls criou um estilo de cinema encantatório e hipnótico. Carta de Uma Desconhecida, com sua apoteose do preto e branco, evolui como um sonho - o sonho de uma mulher que amou demais.

Joan Fontaine foi heroína de dois grandes filmes de Alfred Hitchcock quando chegou a Hollywood, no começo dos anos 1940, Rebecca, a Mulher Inesquecível e Suspeita. No segundo, é a mulher que suspeita de que o marido quer matá-la. O copo de leite que ele lhe traz está envenenado? Joan parecia frágil, mas torna a resiliência de Lisa sincera e convincente. Louis Jourdan foi, por mais de uma década, o príncipe francês de Hollywood. Tinha o physique du rôle para o papel. Belo, elegante, mas destituído de força interior. Essa acusação de fraqueza - de frouxidão - foi muitas vezes feita ao próprio Ophuls, quando se escondia atrás dessas mulheres quase sempre condenadas ao fracasso.

Há, no cinema dele, um clima permanente de festa. Bailes, concertos, espetáculos circenses e, radicalizando a própria ideia de movimento, Ophuils fez filmes de estrutura circular. La Ronde/Conflitos de Amor, na fase final francesa, fecha esse círculo. As histórias dos amantes que se fecham e voltam ao começo. Ou Madame De..., o nome de família nunca é pronunciado, ou então é abafado por algum ruído. Louise é seu nome e ela recebe um par de brincos de presente do marido, o General de Louise endivida-se, vende os brincos e diz ao marido que os perdeu. Advertido pelo joalheiro, o general resgata a joia e a presenteia à amante que parte para Constantinopla. Os brincos são de novo vendidos e se tornam propriedade do embaixador italiano, que, em Paris, os dá de presente à nova amiga, que não é outra senão Madame De... Ela diz ao general que os encontrou, mas ele sabe que é mentira e confronta a mulher.

Danielle Darrieux, Charles Boyer, o marido, Vittorio De Sica, o embaixador. Desejos proibidos. Essa circularidade na posse dos brincos assemelha-se ao vaivém da ligação de Lisa e Stefan em Carta de Uma Desconhecida. Ophuls filmava ambientes luxuosos, mulheres elegantes, fazia de seus filmes verdadeiras festas para os olhos, mas, a despeito do ruído - da aparência -, é um mundo no qual não existe alegria, nem felicidade. Essa desmontagem do próprio artifício é que tornava Max Ophuls tão atraente para os adeptos da politique des auteurs. Pois é como se ele, consciente de suas ferramentas, as entregasse para o público sofisticado que era o dele. Max teve um filho que também virou diretor. Marcel Ophuls foi assistente - de Julien Duvivier, Anatole Litavak, de seu pai. Foi um ficcionista na melhor das hipóteses mediano - o episódio de O Amor aos 20 Anos, Peau de Banane, Feu à Volonté.

Em algum momento, Marcel deve ter-se dado conta de que nunca iria crescer à sombra de Max. Seria sempre comparado com o pai. Buscou a própria via, e a encontrou. No final dos anos 1960, iniciou sua crônica de uma cidade francesa sob a ocupação alemã, durante a 2.ª Guerra Mundial. Resultou no monumental documentário Le Chagrin et la Pitié, de 1971. Seguiram-se Hotel Terminus, sobre o caso do nazista Klaus Barbie, Veillées d'Armes, sobre o jornalismo de guerra, etc. Ophuls pai, o máximo de artifício. Ophuls filho, o máximo de documentação. Duas faces de uma mesma intenção crítica, e autoral.

Onde assistir:

  • À venda em DVD
Estadão
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