Em 'Alice de Cor e Salteado', o país das maravilhas é um abrigo antibomba na Segunda Guerra Mundial
Musical que estreia em São Paulo dá nova cara ao clássico literário de Lewis Carroll, transforma a toca do coelho em uma estação de metrô de Londres e conta uma história de como sobreviver a traumas
A minissérie Adolescência, hit mundial da Netflix, escancara as consequências nefastas do bullying ao mostrar um garoto contemporâneo como uma criatura frágil, abandonada pela sociedade. Com estreia no 7 de junho, o musical Alice de Cor e Salteado segue um caminho semelhante. "Nosso espetáculo é sobre como sobreviver a um trauma", comenta a diretora e escritora americana Jessie Nelson, que colaborou na criação do musical ao lado de Steven Sater e Duncan Sheik. "O que é comum entre a minissérie e nosso show é a forma como os jovens são colocados em trágicas situações nesse mundo que lhe oferecemos para sobreviver."
Alice de Cor e Salteado (Alice By Heart, no original) estreou em Londres em 2012 como uma história de amor, perda e o poder curativo da imaginação. Ambientado na capital inglesa em 1941, durante a 2ª Guerra Mundial, o musical acompanha a jovem Alice Spencer (Gabi Camisotti) que tem que se abrigar em uma estação de metrô quando começa um bombardeio.
Ela vai acompanhada do amigo Alfred (Diego Montez), que está gravemente doente com tuberculose. Lá, eles encontram um grupo de jovens e desajustados, transtornados com a destruição provocada pelo conflito. "A trajetória de Alice é o ponto de partida para discutirmos o fim da infância e uma nova etapa de conhecimento", comenta Steven Sater que, como Jessie Nelson, conversou com o Estadão por Zoom.
A dupla, juntamente com Duncan Sheik, se inspirou no clássico Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, publicado em 1865. O livro conta a história da menina chamada Alice que cai em uma toca de coelho que a transporta para um lugar fantástico povoado por criaturas peculiares e antropomórficas, revelando uma lógica do absurdo, característica dos sonhos.
E é justamente em um desgastado exemplar dessa obra que Alice, a do musical, busca refúgio espiritual em um mundo de fantasia, onde pode reescrever a própria história e encontrar força para lidar com a realidade brutal ao seu redor. "Percebemos que havia muitos temas no livro de Carroll que podiam ser mais explorados", conta Sater. "Questões como por que cresci tanto? Por que minha identidade está mudando e não reconheço quem eu era ontem? Encaramos o livro com o olhar de um jovem, buscando temas mais profundos."
O universo adolescente não é novo para Sater e Sheik que, em O Despertar da Primavera (2006), retratam um grupo de adolescentes em meio a situações de descoberta pessoal, despertar sexual e opressão, entre outras questões. Amadurecimento que também é o fio da meada de Alice de Cor e Salteado. "Tivemos que elaborar uma história dentro do mundo criado por Lewis Carroll, um espetáculo sobre o amor por um livro e o que ele pode significar", conta Jessie. "O objetivo era encontrar cores diferentes para dar vida a personagens extravagantes."
A proximidade com a obra de Carroll começa quando Alice lê trechos do livro para reanimar Alfred, o que irrita a enfermeira encarregada de cuidar do rapaz. Ela, que personifica a Rainha de Copas, destrói o livro, mas Alice decorou o texto, o que explica o título do musical, tanto em português como no original. E Alfred, com a vida ameaçada, lembra o apressado Coelho, sempre preocupado com o passar do tempo. Outros jovens da estação de metrô se tornam vários personagens de Carroll que Alice encontra ao longo do caminho em sua busca por um refúgio seguro.
Máscara de gás e outros objetos cênicos
Como a jornada original da menina é repleta de momentos surreais e mágicos, os criadores do musical usaram objetos habitualmente encontrados em abrigos antiaéreos como objetos de cena.
"Escolhemos elementos típicos de uma guerra, como máscaras de gás e paraquedas, e começamos a observá-los com o olhar de uma criança", explica Jessie. "Assim, uma máscara de gás lembra o bico de um flamingo enquanto um paraquedas aberto simula uma onda do mar onde dança uma lagosta. Algo surreal e mágico. Com isso, exploramos o poder da imaginação para ajudar o público a transcender. Steven e eu lembramos de Nietzsche para quem a arte é essencial para que a realidade não nos destrua."
Abordagem introspectiva e emocional mostra conflitos do amadurecimento
"Alice quer permanecer no mundo de sua infância, mas precisa enfrentar a realidade. Esse conflito entre inocência e maturidade é um tema forte que ressoa especialmente com adolescentes e jovens adultos", comenta Gustavo Barchilon, diretor da versão brasileira. "Embora muitas adaptações de Alice no País das Maravilhas existam, poucas exploram a história com uma abordagem tão introspectiva e emocional."
Para criar um clima mais intimista para o público, Barchilon organiza a montagem em um teatro de arena e não no habitual palco italiano. "Interpreto essa obra com um olhar muito sério, pois vejo nela elementos fortemente influenciados pelo teatro do absurdo, um mergulho beckettiano. Se olharmos para Alice no País das Maravilhas, percebemos claramente essa atmosfera surrealista, e a peça bebe muito dessa estética", explica.
Alice de Cor e Salteado é uma das primeiras produções da Moca, produtora independente fundada pelos protagonistas Gabi Camisotti e Diego Montez. "É uma obra poética, delicada e intensa, que fala sobre a força da imaginação em momentos de perda, sobre crescer em meio ao caos, sobre encontrar refúgio naquilo que nos move por dentro", comenta Gabi. "Acompanhamos a trajetória de dois melhores amigos que mudam a vida um do outro com a força de uma história. É sobre como a arte motiva, consola, ensina e transforma", completa Montez.
Serviço - Alice de Cor e Salteado
- Teatro Estúdio - Rua Conselheiro Nébias 891, Campos Elíseos, São Paulo.
- Temporada: 7/6 a 4/8
- Sextas, sábados e segundas, às 20h30
- Domingos: Dia 8 de junho, às 16h / 15 a 29 de junho, às 18h30 / 6 de julho a 3 de agosto, às 16h