Script = https://s1.trrsf.com/update-1765224309/fe/zaz-ui-t360/_js/transition.min.js
PUBLICIDADE

Como um acervo caótico de Hermeto Pascoal virou a nova série 'Obra Viva'?

Entre 1982 e 1985, Hermeto escreveu dezenas de partituras para flauta, sem títulos ou marcações. Décadas depois, essas anotações viraram o primeiro volume da série

10 dez 2025 - 09h12
(atualizado às 09h30)
Compartilhar
Exibir comentários

"Não há critério além do espanto diante da beleza." Foi essa a bússola que guiou Sylvio Fraga, diretor artístico da Gravadora Rocinante, e outros produtores quando tiveram acesso ao vasto acervo de partituras de Hermeto Pascoal. Centenas de partituras "sem vida", que foram traduzidas e, agora, lançadas nesta quarta, 10. "O método foi levar todo o material de flautas para os ensaios e testar," explica. O resultado: Obra viva de Hermeto Pascoal — Vol. 1 Flautas (2025).

Foto: Thiago Poses / Rolling Stone Brasil

O disco revela tesouros inéditos ou pouco explorados do gênio alagoano, compostos entre 1982 e 1985. Mas essas não eram partituras prontas para gravação. Muitas não tinham títulos. Outras não traziam marcações de expressão ou articulação. Eram registros puros da imaginação de Hermeto, anotações de um criador compulsivo que, como definem os produtores em entrevista exclusiva à Rolling Stone Brasil, "se dá para escrever em cima, usa para anotar uma melodia".

Quando eles viram o que tinham em mãos, imaginaram imediatamente essa série de LPs, já com o nome "Obra Viva" e tudo. O acesso ao acervo veio através de Scubi, empresário de Hermeto, com anuência da família, pensando inicialmente numa possibilidade de edição de partituras. Mas o espanto diante da beleza falou mais alto.

Um acervo que quase se perdeu

A história deste disco começa com Felipe José, multi-instrumentista mineiro, que digitalizou o vasto acervo de partituras de Hermeto: "Seria infinitamente mais complicado trabalhar a partir dos arquivos físicos. "Depois disso, o trabalho ainda estava longe de terminar. "Faltava organizar muita coisa, então Felipe José e eu [Sylvio] montamos um plano para isso," revelam. Jovino Santos Neto, ex-integrante do lendário grupo do Campeão e organizador do acervo, já tinha transcrito boa parte do que há nos arquivos. Agora, faltava cruzar os dados e criar uma organização final de tudo, consolidada.

É um caos criativo que reflete a própria natureza de Hermeto. Um artista em tempo integral, sempre anotando, sempre criando. Sylvio traça um paralelo revelador: "São criadores em tempo integral. Se dá para escrever em cima, Hermeto usa para anotar uma melodia." Esse impulso incontrolável de criar gerou um acervo imenso, mas também fragmentado, esperando décadas para ser organizado e, finalmente, ouvido.

Se Felipe José digitalizou e Sylvio teve a visão da série, foi Bernardo Ramos quem traduziu aquelas partituras silenciosas em música viva. Como diretor e produtor musical do disco, Ramos enfrentou um desafio singular: as partituras originalmente não traziam marcas de expressão e de articulação. Algumas nem sequer tinham nome.

"Bernardo fez um trabalho primoroso, de grande sabedoria e sensibilidade," resume Fraga. Foi ele quem dirigiu os ensaios e as gravações, orientando a abordagem de cada peça. Foi ele quem deu marcações de expressão onde não havia. E foi Sylvio, quem nomeou as obras que Hermeto não chegou a batizar, como os diversos quartetos e quintetos que aparecem no disco com títulos descritivos e numeração.

"Hermeto ia nomear as peças, mas não deu tempo," explica Sylvio. A solução foi adotar uma nomenclatura que não pretende sugerir cronologia, apenas organizar: Quarteto de flautas n.º 1, n.º 2, n.º 3, e assim por diante, até fecharem a seguinte lista:

Lado A (16:09)

  1. Amigo Sion (4:40) 
  2. Suíte Mundo Bom (dedicada a Odette Ernest Dias)

    1º movimento: A corrida dos patos (1:33)

    2º movimento: A feira dos sons (0:53)

    3º movimento: Festança (2:07) 

  3. Duo de flautas n.º 1 (dedicado a Celso Woltzenlogel) (2:31) 
  4. Quarteto de flautas e piano n.º 1 (1:28) 
  5. Quinteto de flautas e piano n.º 1 (1:48) 
  6. Quarteto de flautas n.º 1 (1:09) 

Lado B (19:52)

  1. Quarteto de flautas n.º 2 (2:54) 
  2. Quarteto de flautas n.º 3

    1º movimento: Passeio (2:27)

    2º movimento: Caminhos lindos (1:48)

    3º movimento: Cheguei, cheguei, cheguei, cheguei! (1:55) 

  3. Duo de flautas n.º 2 (dedicado a Celso Woltzenlogel) (4:06) 
  4. Quarteto de flautas n.º 4 (0:50) 
  5. Quarteto de flautas e trombone n.º 1 (2:22) 
  6. Quarteto de flautas e trombone n.º 2 (0:38) 
  7. Quarteto de flautas e trombone n.º 3 (1:11) 
  8. Quarteto de flautas e trombone n.º 4 (0:52) 
  9. Quarteto de flautas e trombone n.º 5 (0:49) 

Os flautistas com o DNA do Campeão

De nada adiantaria ter tudo digitalizado, nomeado, organizado, se quem fosse interpretar não estivesse à altura. Por isso a escolha dos intérpretes não foi aleatória. O álbum reúne alguns dos flautistas mais importantes do país: Aline Gonçalves, Andrea Ernest Dias, Carlos Malta, Eduardo Neves e Marcelo Martins. Mais do que técnica impecável, eles trazem algo que não se ensina: a linguagem de Hermeto no DNA.

"Os flautistas foram escolhidos justamente por terem uma relação profunda com a obra do Campeão, por terem a linguagem dele no DNA", explica Sylvio. "Isso é mais do que meio caminho andado, o domínio da linguagem estética, expressiva. Não há partitura nem regente que coloque isso numa pessoa".

Entre todos, Carlos Malta ocupa um lugar especial. Ele foi integrante por mais de uma década do grupo de Hermeto, exatamente na época em que as peças deste disco foram compostas. "Ele teve um papel de liderança simplesmente tocando", observa Sylvio. "A maneira dele de tocar as peças inevitavelmente afeta os outros músicos".

Malta guarda nos dedos a memória muscular de algumas dessas composições. "Talvez seja o grande melodista do Hermeto", diz Sylvio. "Foram muitos anos tocando lado a lado com o Campeão, muitas vezes os dois tocando instrumentos de sopro, moldando uma forma de 'cantar'. Foi a formação dele".

É essa memória viva, encarnada nos dedos e no sopro de Carlos Malta, que traz uma atmosfera única ao álbum. Não é apenas interpretar Hermeto. É ter vivido Hermeto, ter respirado no mesmo ritmo, ter moldado melodias juntos durante anos.

Para Jovino Santos Neto, que presenciou o nascimento dessas composições, ouvir o disco traz sentimentos contraditórios. "É um prazer enorme ouvi-las de novo", confessa. Mas há também "um alívio tremendo, por saber que esse legado musical vai ser preservado para as gerações futuras".

Organizando o caos

Como garantir unidade estética num repertório tão diverso? A pergunta é inevitável. A resposta está na dedicação.

"São os ensaios, a dedicação, a investigação do material para encontrar a maneira pela qual cada peça encontra sua expressividade maior. Fazendo isso, o conjunto das músicas vai se abrindo e florescendo e a gente vai se entendendo dentro dele."

É um processo orgânico. "O trabalho em uma peça informa o trabalho em outra e os ajustes vão sendo feitos." Não é apenas executar partituras. É mergulhar num universo composicional único e deixar que as próprias peças conversem entre si, revelando seus parentescos e singularidades.

O período concentrado de composição (apenas quatro anos) também ajuda. É um recorte temporal que, apesar da diversidade de abordagens, mantém uma coerência estética. É Hermeto em plena maturidade criativa, explorando sistematicamente as possibilidades da flauta.

E, no fim, há algo inconfundível. Aquela marca que se reconhece em dois compassos. O temperamento harmônico único, as células rítmicas características, a liberdade melódica que só Hermeto tem. É caos, sim. Mas é um caos assinado.

"Obra Viva", o primeiro capítulo de muitos que vêm por aí

Obra viva de Hermeto Pascoal — Vol. 1 Flautas é apenas o começo. A série pretende revelar mais tesouros do acervo do Campeão, mas Sylvio é econômico em detalhes sobre os próximos volumes.

"Podem esperar pela continuidade, já estamos trabalhando no próximo", revela. E, com humor: "E digo mais: não digo nada."

O que se sabe é que há material suficiente para muitos volumes. O acervo digitalizado por Felipe José é vasto, e a organização ainda está em andamento. "Ainda falta organizar muita coisa", admite Sylvio. O cruzamento de dados com as transcrições de Jovino Santos Neto e a criação de uma organização final consolidada é trabalho para anos.

Mas a série já cumpre um papel fundamental: preservação. É isso que a série "Obra Viva" celebra. Não é arqueologia de algo morto, empoeirado, do passado. É o resgate de uma vitalidade que nunca deixou de existir, apenas esperava para ser ouvida. São partituras que pareciam mudas, mas estavam apenas aguardando os intérpretes certos, o momento certo, o espanto certo diante da beleza.

"Hermeto anotava melodias em qualquer superfície." Décadas depois, essas anotações viraram arqueologia musical. Mas uma arqueologia diferente, que não desenterra o passado. Desenterra o presente. Desenterra a vida.

Rolling Stone Brasil Rolling Stone Brasil
Compartilhar
Publicidade

Conheça nossos produtos

Seu Terra












Publicidade