Como os Beatles deram início à era dos álbuns com 'Rubber Soul'
Finalmente dotados de tempo para explorar o estúdio, quarteto de Liverpool digeriu influências recentes e elevou o patamar para bandas pop
O álbum como formato já existia bem antes dos Beatles. Outros artistas já haviam no passado mostrado a capacidade de explorar suas dimensões. Entretanto, na música pop dos anos 1960, LPs ainda eram vistos como uma maneira de apenas compilar hits junto a músicas soltas para conseguir uma grana extra.
O quarteto de Liverpool começou aos poucos a fazer o povo rever essa ideia simplesmente pela qualidade de suas composições e como levavam sua arte à sério. A Hard Day's Night (1964) continha apenas composições da própria banda, algo antes inconcebível no pop. Help! (1965) trazia letras introspectivas em vez de apenas os velhos contos açucarados de romance.
Rubber Soul (1965) foi o momento no qual todas as ambições dos Beatles começaram a se alinhar, dando início à era de ouro do grupo. O álbum no qual, finalmente dotados de tempo para trabalhar sem outras obrigações, eles puderam digerir as influências adquiridas ao longo dos últimos dois anos viajando o mundo - sejam musicais, filosóficas ou pessoais - e evoluir como artistas.
https://open.spotify.com/album/50o7kf2wLwVmOTVYJOTplm
Isso significou tomar as rédeas do processo de gravação. O grupo começou a exigir algo além do status quo da sua gravadora, a ponto de planejarem gravar o álbum inicialmente em Memphis. Eles queriam expandir sua paleta sonora além da instrumentação tradicional do pop. Também não tinham interesse em ser capazes de reproduzir essas composições no palco, pois estavam cansados da estrada e iam parar de fazer turnês.
A banda também havia mudado seus hábitos entorpecentes. No começo da carreira, eles faziam uso liberal de anfetaminas para aguentar o ritmo constante de shows e gravações. Ao longo do último ano e meio antes de Rubber Soul, os Beatles se tornaram maconheiros de marca maior. E três deles haviam descoberto as maravilhas do LSD, com apenas Paul McCartney se abstendo. Todos os integrantes atribuíram esse consumo de drogas à explosão criativa e a decisão de explorar as possibilidades do estúdio como instrumento.
O solo de piano em "In My Life" foi gravado pelo produtor George Martin com a fita em velocidade reduzida pela metade, depois acelerada ao normal para soar como um cravo, um instrumento barroco de teclas. George Harrison tocou sitar em "Norwegian Wood (This Bird Has Flown)". Paul gravou uma faixa de baixo com fuzz, então um efeito novo no rock, na canção "Think for Yourself". A banda também fez muito uso de harmonium, tipo um órgão europeu, como recurso para encorpar os arranjos.
https://www.youtube.com/watch?v=ZqpysaAo4BQ&list=RDZqpysaAo4BQ&start_radio=1&pp=ygUSYmVhdGxlcyBJbiBNeSBMaWZloAcB
Só que todas essas inovações musicais não teriam o mesmo impacto se as composições em si fossem bobas. Os Beatles estavam passando por um momento de mudança na sua dinâmica. Em Help!, Paul McCartney contribuiu com "Yesterday", a primeira faixa na qual nenhum dos outros integrantes participou. Isso deixou John Lennon extremamente competitivo no departamento de composição.
"In My Life" foi resultado disso. Uma linda balada na qual ele examina o impacto de pessoas e lugares na sua trajetória, que se tornou um clássico dos Beatles. "Norwegian Wood (This Bird Has Flown)" também entra nessa categoria, entretanto como um espelho temático. Isso pois a canção é supostamente John se abrindo sobre seus casos extraconjugais. "Nowhere Man" completa a trifeta, com Lennon cantando sobre um sujeito sem lugar para ir; talvez ele mesmo.
Enquanto Paul McCartney ficou encarregado da cota de canções de amor, suas composições refletem uma faceta mais madura do tema. A esse ponto, ele estava namorando a atriz Jane Asher. Suas contribuições exploram as dinâmicas de um relacionamento adulto cheio de altos e baixos.
Além disso, os arranjos do álbum tendem a refletir a apreciação dos Beatles pelo soul feito por Motown e a gravadora Stax, de Memphis. Daí o nome Rubber Soul, brincadeira da banda com o fato deles estarem fazendo uma versão chinfrim (aos olhos deles) do estilo. Nela, os integrantes reduziram a velocidade em que tocavam para enfatizar o ritmo das canções. Não à toa foi quando artistas americanos começaram eles a fazer covers da banda britânica. Antes era o contrário.
1965 foi um divisor de águas na música pop. Uma geração de artistas mostrou como o movimento jovem não era uma mera modinha, que estavam ali para ficar e mudar tudo na cultura. E os Beatles, como os artistas mais populares do planeta, chancelaram essa ideia ao não apenas adotar essa mesma mentalidade, mas também fazer música melhor que a maioria.