PUBLICIDADE

CineOP 2018: "Meu trabalho celebra a beleza da decomposição", decreta Bill Morrison (Entrevista)

Traçamos um perfil do cineasta estadunidense, um dos convidados internacionais desta edição da mostra mineira e especialista em montagem e imagens de arquivo.

17 jun 2018 - 10h34
Compartilhar
Exibir comentários

É bastante possível que os arqueólogos tenham se tornado personagens tão fascinantes - vide o charmoso Indiana Jones de Harrison Ford - e protagonizado histórias extraordinárias no decorrer da arte ocidental porque seu trabalho é inteiramente ligado ao mistério, àquilo que está velado. Como um detetive dos grandes romances policiais dos séculos XIX e XX, o arqueólogo é um explorador nato, arquétipo este que pode ser o melhor de todos para delimitar as fronteiras da arte e do artista que é o cineasta Bill Morrison.

Foto: Beto Staino / AdoroCinema

Entretanto, um dos convidados internacionais do CineOP 2018 é mais do que um arqueólogo de imagens. Colocá-lo nesta posição, de fato, é ato reducionista, uma vez que sua vasta obra derrama-se por inúmeras mídias. Em Ouro Preto para apresentar seu mais recente trabalho, o premiado e aclamado Dawson City - Tempo Congelado - montado inteiramente a partir de uma coleção de 372 filmes descobertos no solo da cidade-título -, o diretor estadunidense provou que ser "escavador" é apenas uma de suas muitas facetas.

"Considere a Fonte", masterclass de Bill Morrison em Ouro Preto.

"Minha formação é como pintor", contou Morrison ao AdoroCinema, durante coletiva de imprensa, explicando suas origens como realizador de filmes de arquivo - obras integralmente baseadas em registros já existentes anteriormente. "A pintura é um arte material e meu interesse era representar isso no tempo. Quando as pessoas olham para uma tela por 30 segundos, isso é muito tempo; por outro lado, quando as pessoas veem um filme por cinco ou seis minutos, é um tempo curto. Queria trazer esse tipo de atenção às imagens e saí da pintura para o cinema", completou o realizador.

Recursos fundamentais para o documentário, os materiais de arquivo são todos aqueles documentos, imagens e outras espécies de registros que, como explicitado acima, compõem o resultado final de todo e qualquer filme de arquivo, seja ele não-ficcional ou não. Um cineasta arquivista, portanto, não filma - pelo menos não necessariamente -; em seus trabalhos, os artistas em questão se apropriam de itens que não foram criados por eles para realizar uma inédita leitura de suas propostas e contextos. Tal vertente é seguida à exaustão pelos documentaristas, principalmente quando estes preparam projetos com vieses históricos e/ou educativos, mas também são parte integrante dos processo criativos de ensaístas, artistas plásticos e outros artesões da imagem que experimentam com a matéria-prima da sétima arte - como é o caso de Morrison.

Dawson City - Tempo Congelado.

De fato, os múltiplos destinos que os materiais de arquivo ganharam durante a História do Cinema estão presentes, de uma forma ou de outra, no estilo do realizador em questão. Durante sua transição da arte visual para a mídia fílmica, Morrison bebeu na fonte de cineastas extremamente distintos entre si; de acordo com o próprio, suas influências passam pelo cinema de vanguarda estadunidense dos anos 1960; pelos autores franceses da Rive Gauche, Chris Marker (La Jetée) e Alain Resnais (Hiroshima, Meu Amor); e ainda pelos esforços de Errol Morris (A Tênue Linha da Morte) e Godfrey Reggio (Koyaanisqatsi) - e tudo isso, é claro, sem contar com os papas da montagem soviética, como Lev Kuleshov, Sergei Eisenstein e Dziga Vertov. E, justamente, tal pluralidade de referências criativas só foi assimilada por Morrison quando ele entrou em contato com a fisicalidade das imagens de arquivo.

Seja em seu monumental Dawson City - Tempo Congelado ou em qualquer um dos outros projetos que apresentou para os cinéfilos ouropretanos no terceiro dia do CineOP, Morrison sempre buscou dar voz à importância da película como item primordial da sétima arte. Atualmente, pode ser difícil entender a questão por causa da presente natureza digital do audiovisual; por outro lado, do início do cinema até os anos 1980, reinou o celuloide, material que deu vida a inúmeros filmes e um aspecto verdadeiramente tangível da sétima arte que sempre teve um espaço no coração de Morrison: "Sempre vi o cinema como um acúmulo de 24 pinturas a cada segundo. Então, parte do meu método tem sido tornar o espectador consciente destas 24 pinturas a cada segundo [...] E os arquivos me ajudaram nisso. Passei bastante tempo, quando jovem, experimentando com películas que filmava ou encontrava [...] Meu interesse pela materialidade me levou ao cinema de arquivo e daí para a construção de uma obra onde o filme representa a memória".

Exímio e paciente pesquisador, o diretor tornou-se um pensador da natureza das imagens - e principalmente de suas fontes - ao mesmo tempo em que é um poeta audiovisual com um gosto pela emoção e um estudioso da potência de todas as produções que foram, por um motivo ou por outro, esquecidas pela História do Cinema. Para o cineasta, a deterioração que encontra nos desgastados materiais de arquivos, frequentemente mal preservados e/ou abandonados nos mais inusitados lugares, não é só um indicativo temporal ou uma lembrança em forma de película - isto é o norte de sua arte: "Meu trabalho celebra a beleza da decomposição. Se você não vê a beleza da decomposição na minha obra, você provavelmente acha que meus filmes são muito feios [...] A beleza do material analógico é que ele morre, passa por um belo ocaso da luz à escuridão. De certa forma, é essa efemeridade e a impossibilidade de preservar o momento para sempre que me trouxe ao cinema".

Assim, ao mesmo tempo em que a visão romântica do cinema analógico leva Morrison às intervenções artísticas próprias dos museus e das galerias de arte, é seu perene interesse pela história e pela memória que o também transforma em um documentarista para além de um cineasta experimental - completando, assim, o ciclo proposto por suas supracitadas influências. Figura que exemplifica as principais preocupações do CineOP - a mostra mineira é orientada à preservação e à restauração cinematográficas -, Morrison, durante sua masterclass, dividiu sua filmografia em cinco seções para analisar como se apropria das mais diferentes fontes para fazer seu cinema, seja a partir de cenas únicas de curtas do início do século XX; de um mesmo filme como base para vários projetos diferentes; de uma coleção de materiais de arquivo; de um só arquivo; ou seja de vários arquivos simultâneos, como é o caso de Dawson City - Tempo Congelado, seu tratado de amor à sétima arte e exame do estabelecimento do capitalismo moderno dos Estados Unidos como sistema hegemônico.

"[Ter analisado o catálogo de filmes encontrados no solo de Dawson City] Não me distingue de ninguém que poderia ter analisado o catálogo antes de mim. Até onde sei, poucas pessoas fizeram isso. Isso traz uma questão: para quem se destina a preservação? Muitos capitais políticos e econômicos foram investidos na restauração dessa coleção, mas as pessoas não se interessam por isso [...] No caso de Dawson City, é importante ver como a história funciona, como a memória pode ser salva. E há muita sorte envolvida no processo de preservação [...] É impressionante. Muitos materiais que estão no filme representam a história e nos permitem compreender que a preservação depende de quem a faz", afirma o artista, chamando a atenção para uma das principais forças motrizes de sua carreira: o questionamento do percurso histórico e a exploração desta trama, uma que é subjetivamente construída, apesar de seus aspectos científicos.

Sob análise, fica evidente que a obra de Morrison como um todo gira em torno dos potenciais que os tesouros perdidos da História do Cinema encerram em si: de fato, a ideia da existência de uma narrativa única, mesmo quando Morrison se apropria de filmes mais hollywoodianos, lineares e convencionais em termos de temática e estrutura, não cabe na filmografia do artista estadunidense. Dentre os projetos que apresentou para a plateia ouropretana, quatro deles se destacam, tanto por suas qualidades, quanto por comprovarem que um material de arquivo pode ser um ponto de partida para qualquer tipo de salto conceitual: Outerborough e Release, nascidos de um cinejornal sobre um trajeto ferroviário na cidade de Nova Iorque e de um sobre a soltura de Al Capone da prisão, respectivamente; e a dobradinha Light is Calling e The Mesmerist, produzidos a partir de uma mesma fonte: The Bells, drama de 1926 com Lionel Barrymore e Boris Karloff.

Total deterioração da película de The Bells produziu o efeito surreal e poético de Light is Calling.

Apesar de extremamente distintos entre si, o quarteto de filmes e o próprio Dawson City - Tempo Congelado - sempre acompanhados e impulsionados pelas brilhantes trilhas sonoras produzidas pelos colaboradores de Morrison - apresentam um cinema que parte do acaso, do primordial encontro entre um artista-pesquisador e películas em estado de degradação, fotogramas queimados e outros registros audiovisuais que jamais poderiam habitar o mesmo espaço contínuo. É a reforma e renascença - através de cortes bruscos, justaposições e outras técnicas de edição modernas -, das pérolas em formato de filme que foram descartadas no passado: o cinema de Morrison, enfim, é uma verdadeira jornada do lixo ao luxo.

AdoroCinema
Compartilhar
Publicidade
Publicidade