Chega de iê-iê-iê: Beatles como ameaça à Alemanha comunista
Também no lado oriental do Muro de Berlim, a juventude ficou fascinada pelo som do quarteto de Liverpool, no começo tolerado, mas logo repudiado como "lixo ocidental" pelo regime, como mostra livro de radialista alemão.Quando a beat music chegou à comunista Alemanha Oriental, o autor e radialista Wolfgang Martin, nascido em 1952, era um adolescente. Ele ficou fascinado com esse novo som com que sobretudo quatro rapazes de Liverpool, na Inglaterra, haviam contagiado todo o mundo, não só o ocidental.
No começo dos anos 60, a chamada Cortina de Ferro dividia a Europa entre o Oeste democrático e o Leste sob influência da União Soviética. Havia dois Estados alemães: a ocidental República Federal da Alemanha (RFA) e a República Democrática Alemã (RDA), uma ditadura socialista. Em 1961 ergueu-se o Muro de Berlim, dividindo ambos não só politicamente, mas fisicamente.
Além disso, havia grandes diferenças de cultura, em especial a jovem. No Ocidente a febre do rock'n'roll há muito se alastrara, graças a astros como Little Richard e Elvis Presley. Para as gerações mais velhas, tratava-se de algo estranho e até ofensivo, mas que não havia mais como deter. Então nasceu um gênero ainda mais "duro", a beat music. E ela não parou diante da Cortina de Ferro.
"Cantores popularescos"
The Beatles, que já haviam contagiado todo o Ocidente, eletrizaram não só a juventude, mas também muitos músicos da RDA, que tentavam copiar seu estilo. O radialista Martin vivenciou tudo, desde o lançamento da carreira do Beatles, aos diversos grupos de beat que logo despontaram na Alemanha Oriental. Ele era fanático por música, escutava as rádios ocidentais e as novas bandas do Leste e do Oeste.
De início o regime comunista alemão tolerava esses sons "do outro lado". A fim de aliviar um pouco a vida dos jovens contidos pelo Muro, permitia-se que escutassem a música que quisessem.
Assim, na popular revista de cultura Das Magazin, uma correspondente de Londres comentava, benevolente: "Os Beatles são um grupo de cantores popularescos entre 20 e 24 anos de idade, que tocam guitarras elétricas e tambores e, com alegre resistência física, dançando ritmicamente o twist para baixo e para cima, lançam sua música num amplificador mecânico."
"A exuberante, desenfreada alegria juvenil de sua apresentação passa para o público, prende e contagia jovens e velhos", prossegue o artigo do periódico alemão-oriental. E os discos dos Beatles também invadiam as casas: a gravadora Amiga, da RDA, chegou a lançar alguns.
Beat music declarada inimiga de classe
Mas esse idílio durou pouco: música, bandas e penteados logo saíram de controle. O governo socialista aproveitou como pretexto os tumultos durante um concerto dos Rolling Stones em Berlim, em setembro de 1965, para declarar a beat music "inimiga de classe". As autoridades receberam a indicação de "proceder com todo o rigor contra tais excessos durante e após os eventos de dança [...], assim como contra essa 'música de hotentotes'".
O chefe de Estado e partido da RDA de 1950 a 1971, Walter Ulbricht, formulou assim seu repúdio: "Será mesmo que agora temos que copiar todo esse lixo que vem do Ocidente? Seria o caso de dizer 'chega' à monotonia do iê-iê-iê, ou como quer que a coisa se chame."
Wolfgang Martin se inspirou nessa citação tornada clássica para o título de seu livro Schluss mit dem Yeah, Yeah, Yeah? (Chega de iê-iê-iê?). Nele, descreve não só sua própria trajetória musical como também como a Beatlemania tomou conta da RDA e quão forte foi a influência do quarteto de Liverpool sobre os músicos alemães-orientais. E registra também o impacto sobre os fãs e bandas quando, no outono de 1965, a liderança socialista resolveu proibir a beat music.
Apenas na cidade de Leipzig, 44 conjuntos de música jovem foram praticamente criminalizados - e mesmo assim nunca abandonaram realmente o iê-iê-iê. Em seu livro, Martin conta também a história desses músicos, entrevistando celebridades pop da RDA como Veronika Fischer, Frank Schöbel ou Dieter Birr, do grupo Puhdys, que contam sobre sua paixão pela música e seu poder de resiliência durante os anos em que estavam proibidos de tocar seu gênero favorito.
Influência indelével dos quatro de Liverpool
No começo da década de 70, por fim, o regime da RDA, agora liderado por Erich Honecker, abrandou a interdição, e anos mais tarde permitiu até apresentações de artistas do Ocidente, como Bruce Springsteen ou o alemão ocidental Udo Lindenberg.
Mesmo bandas dos anos 70 e 80 - entre as quais Silly, Karat, City ou Puhdys, também conhecidas no Oeste -, formadas bem depois de os Beatles já terem se separado, reconhecem que suas raízes estão na música do quarteto de Liverpool.
Martin ilustra sua viagem pelos meios musicais e o quotidiano da RDA com fotos de capas de álbuns, das bandas e com recortes de jornais da época. Hoje esses anos parecem quase cômicos, mas na época eram a dura realidade para a população da Alemanha comunista.
Martin transformou sua paixão em profissão, como autor de programas de rádio e diretor de música de diversas emissoras. Schluss mit dem Yeah, Yeah, Yeah? é uma obra de história alemã: história contemporânea e, naturalmente, também história da música pop, escrita por um nerd com grande amor pelos detalhes. And the beat goes on.