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CCXP19: 'Não dava para viver de quadrinhos no Brasil antigamente', diz Mike Deodato Jr.

Desenhista da Marvel por 24 anos, brasileiro saiu de seu 'sonho de infância' para se dedicar a HQs autorais em 2019

6 dez 2019 - 06h11
(atualizado às 11h29)
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Mike Deodato Jr. é um dos principais quadrinistas brasileiros em atividade no exterior atualmente. Nascido em Campina Grande (PB), ele abriu caminho nos anos 1990 para que vários outros artistas nacionais ganhassem espaço no mercado internacional de HQs. Deodato trabalhou nas séries principais de Mulher-Maravilha, Batman, Homem-Aranha, Vingadores, X-Men, entre outros personagens. No entanto, esses não foram os primeiros super-heróis em sua vida.

Mike é filho de Deodato Borges, jornalista paraibano que foi um dos pioneiros dos quadrinhos nacionais. Inspirado por publicações estrangeiras como The Spirit, de Will Eisner, e Flash Gordon, de Alex Raymond, e competindo com a radionovela Jerônimo: O Herói do Sertão, criada em 1953 por Moysés Weltman para a Rádio Nacional do Rio de Janeiro, Borges idealizou um dos primeiros super-heróis do País - e o primeiro do Nordeste. As Aventuras do Flama foi ao ar na Rádio Borborema, de Campina Grande, pela primeira vez em 1963, e no mesmo ano ganhou as páginas dos gibis.

Tendo os quadrinhos no sangue, Mike Deodato recebeu todo o apoio do pai para iniciar sua trajetória como artista. Na década de 1980, pai e filho chegaram a produzir juntos os quadrinhos 3000 Anos Depois e Ramthar. Quando Mike passou a publicar suas obras fora do Brasil, foi descoberto pela DC Comics, que o chamou para desenhar uma edição da Mulher-Maravilha, em 1994. Após a estreia no mundo dos super-heróis, ele trabalhou em diversas edições da DC Comics e foi, por 24 anos, artista da Marvel.

Em 2019, ele se desligou da editora para se dedicar à sua veia autoral. Ao lado de Jeff Lemire, criou Berserker Unbound, quadrinho sobre um guerreiro medieval que se vê transportado para os dias contemporâneos. A obra teve quatro volumes e deve chegar ao Brasil em fevereiro, pela editora Mino.

Já em parceria com Michael Straczynski, um dos criadores de Sense8, Deodato está criando um multiverso de super-heróis para a editora AWA, liderada por Axel Alonso e Bill Jemas, ex-executivos da Marvel. Os primeiros quadrinhos dessa nova série, intitulada The Resistance, serão lançados no exterior em fevereiro.

Deodato falou sobre sua trajetória, o atual momento da cultura pop e seus projetos futuros em entrevista exclusiva para o Estado. Confira:

Como você vê o atual momento dos quadrinhos no Brasil, tendo ajudado a pavimentar o caminho para isso?

Eu vejo, na verdade, um retorno à glória que os quadrinhos tinham antes. Os quadrinhos já tiveram esse poder de penetração, que se perdeu por conta da competição com a internet, os videogames e outras mídias. Não em termos de vendas, mas de prestígio, principalmente por conta de os estúdios terem descoberto a fonte de inspiração, material para tantas produções, como filmes e séries. O Scorsese falou umas coisas bem apropriadas até sobre os filmes da Marvel, que ele não acha que são cinema... O cinema de arte perdeu espaço para um cinema mais industrial, digamos assim. Mas na época dele os diretores foram muito influenciados pelos quadrinhos também. Então é um círculo, cada um se alimenta do outro.

Qual foi o herói que você mais gostou de desenhar na sua carreira?

Foram tantos... Gostei muito de fazer Thanos, com Jeff Lemire. Old Man Logan, com o Wolverine velho, que também foi muito bom fazer. O Hulk também. Thunderbolt, que eu fiz com Warren Ellis. E Dark Avengers, com o Brian Michael Bendis.

Hoje em dia, muitos brasileiros trabalham para a Marvel e para a DC, mas você foi um dos primeiros a abrir caminho. Como foi quando você começou?

As dificuldades começaram no Brasil mesmo. Nos anos 70 e 80, eu ganhava uma mixaria, mas eu gostava. Na época, morava com meus pais. Trabalhei com meu pai, ele escrevendo e eu desenhando, por um tempo. Mas não dava para viver de quadrinhos no Brasil naquela época. Então nos anos 90 apareceu um estúdio de São Paulo, a Art Comics, e a missão deles era representar brasileiros no exterior. Fiz a primeira história, numa editora pequena, e fui galgando. Até que, em 1994, havia uma vaga para desenho na Mulher-Maravilha, fiz umas amostras e fui descoberto depois de mais de dez anos. Terminei ficando na Marvel por 24 anos, de 1995 até agora.

Fale um pouco sobre a relação com seu pai.

Painho foi o começo de tudo, minha grande influência, meu maior incentivador. A gente fez uma dupla. Ele criou o Flama, que foi o primeiro personagem de quadrinhos do Nordeste. Foi publicado pela primeira vez em 1963, mas ele já tinha criado com 17 anos. Era um personagem de uma novela radiofônica de muito sucesso que ele fazia. E eu sempre o vi desenhando em casa, ele fazia muita coisa, sempre foi um incentivador da produção de quadrinhos local. Quando dirigia um jornal, criava uma sessão de quadrinhos, criava um suplemento dominical para os quadrinhos. Ele sempre esteve envolvido no crescimento dos quadrinhos da região. Eu comecei a fazer quadrinhos influenciado por ele. A gente acabou produzindo quadrinhos juntos, ele escrevendo e eu desenhando, por alguns anos, então eu tive uma verdadeira aula de narrativa com os roteiros dele. Embora ele nunca tenha me dado uma aula formal, ele me apresentou todos os clássicos que importaram na minha formação e explicou por que eram bons e importantes. Autores que um jovem não procuraria. Foi uma relação essencial para a minha formação e para a minha decisão de ser um quadrinista. Para mim foi tudo.

Quais são seus projetos autorais atualmente?

Depois de 24 anos trabalhando com a Marvel, que foi ótimo, foi maravilhoso, eu decidi migrar para o quadrinho autoral porque eu sentia essa necessidade de fazer alguma coisa autoral. Depois que eu trabalhei com o Jeff, ficamos amigos e ele me chamou para fazer algumas coisas. Eu decidi fazer com ele esse personagem bárbaro, uma série chamada Berserker Unbound. Só que eu ainda estava em contrato com a Marvel. Então eu tentei fazer as duas coisas. Nos finais de semana, eu fazia isso, e durante a semana trabalhava para a Marvel. Diferente de um escritor, que pode escrever dez títulos por mês, um desenhista mal pode fazer dois, porque é muito trabalho. O roteirista coloca ali, "batalha de fulano contra ciclano", e acabou por aí, é a gente que vai ter que desenhar (risos). Não querendo desmerecer o trabalho dele, mas nessa parte é fácil. Ou eu vivia o sonho de ser um quadrinista da Marvel, que era meu sonho de infância, ou vivia meu sonho de adulto, que era ser um quadrinista autoral. Descobri que tinha que tomar essa decisão, porque foi muito desgastante. Decidi deixar a Marvel para fazer quadrinho autoral. Deve chegar ao Brasil em fevereiro. Foi uma experiência incrível. Ser responsável por tudo, ter uma liberdade total... Não que eu não tivesse na Marvel, mas são personagens deles, existe uma restrição do que eu posso fazer com os personagens deles. Recentemente eu assinei contrato com a AWA, do Axel Alonso com o Bill Jemas, que eram da Marvel, e criaram essa editora para publicar quadrinhos autorais. Eles me chamaram e aceitei, então estou produzindo atualmente The Resistance, com Michael Straczynski, que é autor de Sense8, Babylon 5, e deve sair em fevereiro agora. Estou muito feliz. Claro, em algum ponto eu vou sentir saudade de fazer super-heróis e devo querer fazer alguma coisa de novo, mas por enquanto estou adorando essa nova etapa da minha carreira. Assim que eu estiver passando fome debaixo da ponte, eu volto (risos).

Quais são as principais diferenças de se trabalhar com personagens que já existiam para personagens que você está criando?

Trabalhar com personagens já existentes, no meu caso, foi por ser fã desses personagens. É pela emoção de poder dar sua contribuição para aqueles personagens e fazê-los como você acha que eles deveriam ser feitos. Agora na AWA, por exemplo, eu estou construindo um universo. Eu e o Straczynski estamos fazendo a base do que vai ser o universo compartilhado de super-heróis, como a Marvel e a DC têm. Então tudo é novo. Qualquer personagem é novo e todos eles vão ter importância no futuro. A sensação de estar criando tudo do zero é fantástica também. E outra coisa é quando você faz um quadrinho totalmente autoral, como o que eu fiz em Berserker Unbound, com o Jeff Lemire. A sensação que eu tenho é a de quando eu estava começando, com 17 anos, no meu quarto, em casa, junto com meus amigos, quando a gente ficava ensaiando uma história. Com 56 anos, estou me sentindo com 17 agora. É fantástico.

Estadão
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