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As sinagogas indianas preservadas por muçulmanos

Outrora cidade mais importante da Índia, Calcutá tinha a maior população judaica do país; os judeus foram embora, mas seu legado continua salvaguardado por seguidores do islamismo.

4 jun 2019 - 18h00
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Outrora cidade mais importante da Índia, Calcutá tinha maior população judaica do país; os judeus foram embora, mas seu legado continua salvaguardado por seguidores do islamismo
Outrora cidade mais importante da Índia, Calcutá tinha maior população judaica do país; os judeus foram embora, mas seu legado continua salvaguardado por seguidores do islamismo
Foto: Jewish Calcutta / BBC News Brasil

Por quase 140 anos, de 1772 a 1911, Calcutá foi a capital da Índia sob domínio britânico - uma movimentada cidade comercial às margens do rio Hugli, no coração de Bengala Ocidental.

Sua posição estratégica, cerca de 150 km ao norte da Baía de Bengala, não apenas fomentou o comércio exterior, mas também atraiu à próspera cidade várias comunidades estrangeiras - de chineses a armênios, passando por gregos. Entre eles, estavam judeus do Oriente Médio.

Conhecidos como 'Bagdá' ou 'Judeus bagdalis' por causa de suas origens no atual Iraque, Síria e outros lugares de língua árabe, os imigrantes judeus começaram a se estabelecer em Calcutá em 1798 por causa de um comerciante chamado Shalom Cohen.

Quando a notícia sobre o sucesso de Cohen no comércio de diamantes, seda, índigo, ópio e algodão se espalhou, a comunidade judaica de Calcutá cresceu rapidamente e, no início dos anos 1900, milhares de judeus viviam ali, harmoniosamente ao lado de muitos hindus e muçulmanos.

Por quase 140 anos, de 1772 a 1911, Calcutá foi capital da Índia sob domínio britânico
Por quase 140 anos, de 1772 a 1911, Calcutá foi capital da Índia sob domínio britânico
Foto: Jewish Calcutta / BBC News Brasil

Após a 2ª Guerra Mundial, moravam na cidade cerca de 5 mil judeus. Em seu auge, na década de 1940, Calcutá abrigou cinco sinagogas, bem como muitas empresas, jornais e escolas judaicas.

Hoje, o que já foi a maior comunidade judaica da Índia é formada por apenas 24 pessoas, uma vez que muitos judeus bagdalis migraram para Israel, EUA, Inglaterra, Canadá e Austrália.

No entanto, enquanto a população judaica de Calcutá envelhece e encolhe, a comunidade remanescente continua uma tradição transcultural que perpassa as últimas três gerações: suas três sinagogas são mantidas e cuidadas por muçulmanos.

'Visão rara'

Subindo a escadaria de mármore e passando pelo vitral da Sinagoga Beth El de Calcutá, construída em 1856, os visitantes se deparam com uma cena rara: uma equipe de quatro muçulmanos vestidos de branco estão ocupados polindo as varandas de madeira, varrendo o piso de mármore xadrez e assegurando que a Estrela de Davi e a menorá de sete pontas que adorna a fachada cor de areia do prédio estejam limpas.

Em seu auge, na década de 1940, Calcutá abrigou cinco sinagogas, bem como muitas empresas, jornais e escolas judaicas
Em seu auge, na década de 1940, Calcutá abrigou cinco sinagogas, bem como muitas empresas, jornais e escolas judaicas
Foto: Jewish Calcutta / BBC News Brasil

Vários dos cuidadores, como Siraj Khan, um muçulmano de terceira geração cuja família vem mantendo a sinagoga há mais de 100 anos, cresceram ao lado dos frequentadores da Beth El.

De acordo com Aline Cohen, secretária-geral de Assuntos Comunitários Judaicos de Calcutá, Khan e os outros zeladores muçulmanos das sinagogas da cidade são considerados como parte da comunidade judaica.

Parentes religiosos

A apenas 300 metros da Beth El, uma das outras sinagogas remanescentes de Calcutá, a Magen David, um imponente prédio de tijolos vermelhos em estilo renascentista italiano, também é mantida por quatro homens muçulmanos cujas famílias cuidam do templo há gerações.

Como em Beth El, depois que abrem as portas e acendem as luzes do altar, iluminando as inscrições em hebraico dos Dez Mandamentos, os funcionários costumam se reunir em um pátio algumas vezes por dia. Ali, abrem seu tapete e rezam em direção a Meca, a cidade sagrada para os muçulmanos.

De acordo com Jael Silliman, um dos últimos judeus remanescentes de Calcutá e autor do arquivo digital Recalling Jewish Calcutta, que visa a preservar as memórias e o legado da comunidade judaica da cidade, sempre houve ali uma familiaridade cultural entre muçulmanos e judeus, uma vez que os primeiros imigrantes judeus da cidade falavam árabe e usavam trajes típicos desse grupo étnico.

Para além de Calcutá, as duas religiões têm, na verdade, uma longa história de sobreposição. Durante os turbulentos anos antes e durante a 2ª Guerra Mundial, muitos judeus europeus fugiram da Alemanha nazista e encontraram refúgio em Calcutá.

Como seus antecessores judeus do Oriente Médio, esses recém-chegados, vindos da Europa, logo descobriram que tinham muito em comum com os muçulmanos que compunham o maior grupo minoritário da cidade - das semelhanças entre comida kosher e halal à música e à dança.

Bengala Ocidental abriga terceira maior concentração de muçulmanos da Índia, e Calcutá, sua capital, sempre foi espécie de refúgio para tolerância religiosa
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Foto: Jewish Calcutta / BBC News Brasil

Ligação especial

"Deus está em toda parte, seja em uma mesquita, em um templo, em uma igreja ou em uma sinagoga. Trabalhar nesta linda sinagoga é um serviço a Deus que faço de todo coração", diz Khan, cujo avô e pai cuidaram da Sinagoga Beth El, tarefa que agora cabe a ele e ao irmão.

"Seu nome ou forma (de Deus) não deve ser diferenciado quando a linguagem do amor e da bondade é falada. E esse vínculo especial é o que sinto com essa sinagoga", acrescenta.

Caldeirão de culturas

Bengala Ocidental abriga a terceira maior concentração de muçulmanos da Índia, e Calcutá, sua capital, sempre foi uma espécie de refúgio para a tolerância religiosa.

Enquanto a maioria dos 4,5 milhões de habitantes é hindu, muçulmanos, cristãos, judeus, budistas e sikhs de todo o mundo há muito coexistem na chamada "Cidade da Alegria".

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Foto: Jewish Calcutta / BBC News Brasil

Hoje, não é incomum em Calcutá que os hindus se juntem aos muçulmanos nas mesquitas para celebrar o "Festival do Sacrifício" do Eid-al-Adha - um dos mais sagrados feriados islâmicos.

A Escola de Meninas Judaicas que foi estabelecida em Calcutá em 1881 é agora predominantemente muçulmana.

E todos os anos, durante a sagrada celebração hindu de Durga Puja e as festividades cristãs de Natal, um mar de foliões bengalis, independentemente da religião, sai às ruas para dançar.

Desaparecimento

De acordo com Cohen, alguns fatores levaram a população judaica de Kolkata (nome atual de Calcutá) a desaparecer após o fim da 2ª Guerra Mundial.

Primeiro, a independência da Índia em relação à Grã-Bretanha, em 1947, prenunciou um período de incerteza para os judeus da Índia.

Bancos e empresas foram nacionalizados, e muitos judeus proprietários de imóveis, temendo que seus ativos pudessem ser tomados pelo governo indiano, mudaram-se para a Grã-Bretanha ou para os EUA.

Além disso, a criação do Estado de Israel em 1948 estimulou uma migração constante de judeus da Índia e de todo o mundo para o novo país.

Futuro incerto

Hoje, a população judaica em declínio de Calcutá enfrenta um futuro muito incerto. Enquanto as sinagogas Beth El e Magen David são agora reconhecidas como patrimônios culturais protegidos pelo governo indiano, elas - junto com a sinagoga mais antiga da cidade, a Neveh Shalom - não realizam cultos regulares aos sábados desde o fim dos anos 1980 devido à falta de fiéis.

Segundo a tradição judaica, são necessários pelo menos 10 homens adultos para dar início à cerimônia, e não há quórum suficiente.

Na década de 1940, Ian Zachariah, tesoureiro da Emunah Calcutta Jewish Trust, lembra que os assentos de madeira nas sinagogas de Calcutá costumavam ser preenchidos por centenas de fiéis durante as Grandes Festas de Rosh Hashaná (Ano Novo) e Yom Kippur (Dia do Perdão).

Agora, os três prédios só são abertos em ocasiões especiais ou mediante pedido a um dos guardas muçulmanos, que são pagos para cuidar dos templos da Emunah Calcutta Jewish Trust.

Dos 24 judeus que continuam a viver em Calcutá, a maioria tem mais de 50 anos e é mais velha do que os muçulmanos que continuam a cuidar das sinagogas.

Inspiração indiana

Enquanto a violência e a tensão política contra judeus e muçulmanos continuam a ganhar manchetes em grande parte do mundo, os zeladores muçulmanos de Calcutá e seu compromisso em cuidar dessas sinagogas são um lembrete não só de que essas duas comunidades têm muito em comum, mas também da importância de amar o próximo.

A população judaica de Calcutá pode desaparecer em breve, mas enquanto houver alguém para cuidar dos templos, abrir suas portas e permitir a entrada de visitantes, uma parte de sua herança perdurará.

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