Aos 89, Adélia Prado tateia o mistério em sua vida e obra e volta com poemas inéditos e comoventes
Depois de mais de uma década sem lançar novos poemas, e um ano após receber o prestigioso Prêmio Camões, poeta mineira lança 'O Jardim das Oliveiras'
Adélia Prado, aos 89 anos e um ano após receber o Prêmio Camões, lança "O Jardim das Oliveiras", uma coletânea com 105 poemas inéditos que exploram temas como fé, transcendência e as contradições da existência.
Quem estranha que o mistério seja matéria e motor da poesia, quando sobre ele escreve Adélia Prado? Estranho seria se não houvesse mistério, se não houvesse enigma. A desmesura da transcendência, que destoa do quadro geral das "nossas bens geridas descrenças", no caso de Adélia é transcendência inescapável, está em sua poética e na unidade de sua obra.
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Aos 89 anos, uma década depois da publicação de sua poesia reunida, e um ano após receber o Prêmio Camões pelo conjunto de sua obra, a autora nos dá notícias da alma em novas páginas, nos 105 poemas de O Jardim das Oliveiras (Ed. Record). Aí ouvimos bater o coração de um século (e uma alma com memória de mil anos), doendo com as dores do mundo, aí vemos se espalhar a neblina das lembranças de infância, maio com sua luz e seus oráculos, a presença da mãe e do pai, e também a neblina do amor voraz de um Deus que é Vida-e-Morte.
Há um anjo por trás das palavras, bem como dádiva em "não ter palavras". Na língua da poesia, dessa poesia especialmente, basta a crônica dos dias, dá-se a liturgia do louvor e da esperança que move montanhas, mesmo a poeta "cansada já, aos quinze minutos do segundo mistério", mesmo na tentação do desespero.
Porque o corpo é essa terra de dores onde tudo se passa, onde adoração e súplica são cultivadas, é sempre o mesmo "eu" que fala e louva, um "eu" que não sai de si - "Passaporte pra quê? / Se nem saio de mim" -, que não descansa de si, conquanto humilde, "movido a duras pancadas / de culpa e medos ancestrais", coração aspirante a santo e também distante da santidade, "campo de areia seca / sem prenúncio de flores ou relva", de "fé oblíqua" e "com coragem de um recruta medroso".
Esse "eu" ama os dois lados do mundo: "guerras, generais soturnos" e "o ponto certo da calda, a feitura acetinada dos glacês". Amante de Deus no amor ao mundo, à altura do cruelmente lúcido, do violentamente místico, mais que pio, chega a "amar as catástrofes / por causa da redenção que elas carregam", dá "graças pelos praguejadores", e vê caber nas chagas de Cristo "eu e o Pedrinho Matador".
Há sinais por toda parte, tudo fala, "do retrós ao albatroz", e a poeta, ali, também segue atenta ao que é poesia sem palavra. Basta a espessura da neblina "para a gula do seu tato". Se pudesse ter o céu sem deixar a "pérola bíblica" dos campos, não perderia sua vida de louvar: "Até nos salmos se pede: / Deus, concede-me a vida. / Pode um cadáver louvar-vos?".
Agora é no corpo que a poeta espera o sinal. "Minha alma quer ver a Deus. / Não quero morrer". Desejaria ter os dois: "Ninguém sabe o que a alma padece / desejando a um só tempo o céu / e as belezas do mundo". Uma eternidade "pra cheirar capim seco à margem da ferrovia", como nos tempos de menina, configura seu sonho de herança imaterial.
É também pasto divino, essa poeta que louva, carne de caça da ânsia de um Deus voraz no seu amor. Adélia sabe dessa voracidade amorosa, e pede: "Me toma, Senhor, como aos recém-nascidos fazem as mães". Junto ao "que é pequeno e fraco", como as crianças e o coração dos homens, ela escreve alguns dos seus mais belos e comovedores poemas, entre eles, Versos para o urubu, Névoa, Timbre, Épocas e Será como se adivinha. Doze anos depois de Miserere (Ed. Record), temos esse coração de poeta muito vivo na palavra que vê sem engano: "Mesmo tendo cem anos, pareço a aurora nascente".
Leia o poema Reza na tarde quente
Entrego tudo a vós com esta canícula,
a humilhação de pensar,
o corpo ininteligível, a morada do Espírito.
Vem, Paráclito, quebranta a fortaleza perversa,
me descansa de mim.
O Jardim das Oliveiras
- Autora: Adélia Prado
- Editora: Record (144 págs.; R$ 59,90 | E-book: R$ 39,90 l Nas livrarias em 8 de setembro)