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A solidariedade natalina em uma SP que não é mais invisível

Grupos da sociedade civil buscam resgatar a dignidade de pessoas que vivem em situação de rua e são invisibilizadas na cidade de São Paulo

22 dez 2021 - 09h00
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Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

É noite de terça-feira (14/12) do último mês do inacabável ano de 2021. Embaixo do viaduto que separa os bairros da Liberdade e Bela Vista, na região central da cidade de São Paulo, é servida uma ceia com fartura de alimentos, decoração natalina e os convidados do banquete são servidos em suas mesas.

A cena é um alento no cotidiano daqueles que se alimentam dentro do espaço sociocultural do Centro de Inclusão pela Arte, Cultura, Educação e Trabalho (Cisarte). Na maior parte do tempo essas pessoas estão nas ruas e tentam garantir a comida do momento, sem nenhuma garantia de quando será a sua próxima refeição.

O último levantamento feito pela Prefeitura de São Paulo, em 2019, mostrou que 24.344 pessoas viviam pelas ruas da cidade. A reportagem procurou a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social para obter números atualizados, mas não teve resposta até a publicação deste texto.

“As pessoas vão parar na rua por diversos motivos. Os mais comuns sempre tem a ver com abandono, seja por uma briga com parentes, separações ou mortes. Só que, ultimamente, a gente percebe que quem está vindo morar nas ruas do centro são pessoas que perderam o emprego, não pode mais pagar seu aluguel na periferia e tem que vir para cá para não morrer de fome”, explica Cris Silva, que faz parte do Movimento Nacional da População em Situação de Rua.

Mesmo percebidos em maior quantidade nas calçadas da principais vias da cidade ou perambulando sem rumo pelos mesmo espaços, essa parcela da população é invisibilizada, tida como incômoda e tratada apenas como um problema sintomático de uma grande metrópole como São Paulo.

Há sete anos o cineasta André Soler saiu, junto com amigos, com câmeras nas mãos para enxergar e ouvir aqueles que são diariamente invisibilizados. Dali surgiu o SP Invisível, que teve início como páginas nas redes sociais como Instagram e Facebook e que se transformou numa ONG, que chega a contar com o apoio de cerca de 3 mil voluntários em campanhas como a do Natal.

"Uma das camadas da invisibilidade que a gente tenta quebrar é a da escuta. A gente realmente quer saber quem são aquelas pessoas e quais são as suas histórias. A gente percebeu a transformação que a gente estava fazendo na vida dessas pessoas. Tanto das que a gente escutava quanto das pessoas que viam essas histórias que a gente postava na internet”, conta Soler, de 28 anos, que ganhou, em 2017, o prêmio Santo Dias de Direitos Humanos pelo trabalho do SP Invisível.

Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

Ajudar e ser ajudado

Os passos de Adriano Máximo, de 38 anos, são rápidos e andam de um lado para o outro de dentro do espaço da Cisarte. Procura servir e saber como está cada uma das pessoas que estão ali. Se elas querem mais alguma coisa, se estão satisfeitas. Seu raciocínio, palavras e gestos também são ligeiros. Em uma conversa, quem não prestar atenção em cada detalhe da história que ele conta, é capaz de perder o fio da meada.

Ao mesmo tempo que é um voluntário da ação de Natal do SP Invisível, Adriano é um beneficiado. Ele mora na rua há 20 anos e diz que já passou por muitas coisas. Desde ser preso até escapar da morte, depois de sofrer um traumatismo craniano após uma briga. Apesar de tudo isso, ele afirma ser somente na rua onde encontra a sua verdadeira liberdade.

“Morar na rua não é um bicho de sete cabeças. É bom e também é ruim. É ruim que você não tem um endereço fixo, um comprovante de residência. Mas é bom é que você passa a entender melhor o ser humano porque todos os tipos de pessoas moram nas ruas. Não é só bandido ou marginal que tem ali. Tem gente que fala diversas línguas, gente com muito estudo e, cada um, por um motivo, caiu na rua”, afirma Adriano.

Ele mesmo tem uma história muito peculiar. Sem querer se aprofundar ou dar detalhes de cada episódio, ele conta que nasceu em Israel e que ainda tem parentes muito ricos que moram em São Paulo, mas ele mesmo prefere não ter contato com os familiares. “Nenhum presta”, diz. Nessas duas décadas vivendo na rua teve 12 filhos e quatro netos. Sua última esposa foi quem tentou matá-lo com golpes de barra de ferro na cabeça.

Atualmente Adriano se diz convertido ao protestantismo, garante que não faz nenhum tipo de uso de drogas ou álcool e que gosta de servir as pessoas com que convive na rua. “O que eu puder fazer para ajudar o próximo eu faço”.

Cris Silva também teve seus momentos vivendo na rua e foi nessa época que conheceu o movimento do qual faz parte atualmente. Se politizar sobre uma causa tão próxima foi uma das melhores coisas que esse período lhe trouxe. Hoje ela luta pelos direitos daqueles que não têm casa, assim como ela não teve um dia.

“Quando a gente entra nessa militância a gente vai mostrar para as pessoas que estão hoje na rua o que a gente passou para que sirva de exemplo e dê força para que elas saiam dessa”, conta Cris, que tem 53 anos de idade.

Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

As portas da rua

Os motivos que fazem alguém chegar, montar moradia e permanecer na rua são vários, mas em sua grande maioria são conhecidos e não costumam mudar muito. Enquanto essa resposta não vem, essa população só cresce dando a impressão que uma solução fica cada vez mais distante de ser encontrada. 

“A demanda só aumenta e os serviços de acolhimento que existem hoje para essa população não dão conta. As pessoas chegam nas ruas por diversos motivos, mas o gargalo pra sair é pequeno. Não existe uma política pública para saída. Enquanto as pessoas ocupam o espaço urbano em pouco tempo, a saída delas leva muito tempo”, explica Darcy da Silva Costa, secretário do Movimento Nacional da População em Situação de Rua.

Um dos fatores que aumenta a morosidade para que essas pessoas deixem de morar na rua passa pela discriminação e racismo. Quem trabalha junto a população de rua afirma que existem três eixos para que essas pessoas deixem as vias das grandes cidades: Emprego, moradia e acesso a políticas públicas. “A primeira coisa que perguntam quando você vai procurar um emprego é onde a pessoa mora. Quem vai me dar um trabalho se eu digo que moro na rua?”, questiona Adriano Máximo.

“A discriminação e o preconceito para a população em situação de rua está dentro da própria sociedade e passa pelo racismo, já que a grande maioria dessas pessoas são negras. É a mesma estrutura escravagista que faz com que só algumas pessoas privilegiadas tenham acesso a direitos, enquanto outras têm a sua liberdade roubada”, afirma Darcy.

O Movimento Nacional de Pessoas em Situação de Rua busca trabalhar o indivíduo em suas singularidades e uma das ações que fomenta isso é a loja solidária, onde as pessoas em situação de rua podem escolher as roupas que estão à disposição e pagar um preço módico por cada peça. “Quando a pessoa apenas aceita uma doação é tirada dela o direito de escolha, que também é uma forma de tirar a sua liberdade. Nós procuramos resgatar isso nelas”.

Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

Desejos para o natal e expectativas para ano novo das pessoas em situação de rua

“2022 como um ano muito difícil para a população em situação de rua e a gente vai ver ainda mais gente nessa situação, principalmente mulheres e crianças. Esse ano a gente perdeu uma grande chance de encarar esse problema de frente”,  diz André Soler, fundador da SP Invisível

“Meu Natal vai ser na rua. Eu queria mesmo uma roupa e um sapato. E o que eu mais queria era R$ 150 para ir no passeio da igreja”, afirma o voluntário Adriano Máximo.

Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

“Eu queria que as pessoas não fossem egoístas, pensassem no próximo. E que todas as famílias tivessem algo para comer neste Natal”, deseja o ativista Cris Silva.

Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

“Gostaria de ver moradia como direito e não como algo meritocrático”, diz Darcy da Silva Costa, do Movimento Nacional da População em Situação de Rua.

Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo
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