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Por que depender das redes sociais para guardar memória digital é um risco

Especialistas alertam sobre cuidados com nosso acervo digital pessoal e histórico; depender demais de Google e Amazon não é recomendado

11 abr 2023 - 05h00
(atualizado em 11/7/2023 às 14h59)
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Big techs detêm uma quantidade absurda de dados do público em suas máquinas, como fotos e vídeos pessoais
Big techs detêm uma quantidade absurda de dados do público em suas máquinas, como fotos e vídeos pessoais
Foto: Reprodução / Freepik

O álbum de casamento, de formatura, do nascimento do bebê, uma viagem especial, tudo está armazenado digitalmente hoje em dia. Mas quando você deixa uma rede social e deleta a conta, todo aquele conteúdo simplesmente desaparece. Na outra ponta, a plataforma pode apagar tudo unilateralmente ou sem querer, em uma falha técnica em seus servidores. 

Brewster Kahle, fundador do Internet Archive — entidade voltada a armazenar páginas web que são alteradas ou desativadas com o tempo — reviveu essa inquietação moderna em um artigo para a revista Time em dezembro. Sua inspiração para o texto foi a turbulência da aquisição de Elon Musk sobre o Twitter, ocorrida em outubro do ano passado.

"O êxodo em massa do Twitter e a consequente perda de informações, embora preocupantes por si só, mostram algo fundamental sobre a construção de nosso ecossistema de informação digital: informações que antes estavam prontamente disponíveis para você – que até pareciam pertencer a você – podem desaparecer em um momento", provocou Kahle.

Cerca de um milhão de pessoas saíram do Twitter desde a aquisição de Musk, de acordo com uma reportagem da revista MIT Technology Review em novembro passado. O índice ocorreu apenas um mês após o empresário passar a comandar a rede social. Espera-se ainda que mais de 30 milhões de usuários deixem o Twitter nos próximos dois anos, de acordo com uma previsão da Insider Intelligence.

Em resumo, como podemos proteger as memórias digitais de todos esses fatores? A resposta passa principalmente como a internet se moldou ao redor de cada vez menos empresas. Elas, por sua vez, detêm uma quantidade absurda de dados do público em suas máquinas. Em paralelo, há poucas iniciativas independentes que sejam alternativas aos servidores das big techs

A nuvem da internet nas mãos de poucos

Dropbox, Google Drive, Google Fotos, iCloud e Samsung Cloud são alguns dos nomes mais conhecidos dentre os que utilizam somente “nuvens” como destino final dos dados. 

Já o Crashplan, Blackblaze e TimeMachine, incluído em computadores da Apple, são exemplos de programas de backup para computadores que salvam localmente, mas que também podem trabalhar com nuvem.

No geral, 62% do mercado de nuvem é investido por três big techs: Amazon (AWS), Microsoft (MS Azure) e Google, segundo dados da consultoria Canalys do final do ano passado. Há um nível de confiança cada vez maior do publico sobre esses serviços. Mas e quando eles falham, o que pode acontecer?

Em janeiro, a BBC noticiou o caso de Natalie Brown, dona de um pequeno negócio focado em seu blog por uma década. Ele estava no provedor de nuvem Gridhost, que fechou em novembro, destruindo tanto o blog quanto seu backup.

A plataforma Internet Archive recentemente foi processada por quatro editoras de livros. A ação judicial veio após o site lançar a “Biblioteca Nacional de Emergência” na pandemia de covid-19, que permitia que as pessoas lessem 1,4 milhão de livros digitalizados sem lista de espera. 

A organização sem fins lucrativos é uma das bibliotecas digitais mais famosas e úteis para acervos digitais. Se ela perder o caso e haver necessidade de pagar indenizações, isso pode criar consequências para o serviço, que é totalmente gratuito para o grande público.

Digitalização faz com que arquivos produzidos pelo indivíduo estejam em plataformas que não são do controle dele, diz Nina Velasco
Digitalização faz com que arquivos produzidos pelo indivíduo estejam em plataformas que não são do controle dele, diz Nina Velasco
Foto: Reprodução / Freepik

O risco de entregar tudo às empresas

Arquivos que antes eram pessoais, como álbuns de fotografia, diários e anotações de trabalho, são dados privados. Mas podem fazer parte de um arquivo institucional público, a depender de doações ou ações de reconhecimento dos arquivos privados. 

No entanto, a digitalização faz com que arquivos produzidos pelo indivíduo estejam em plataformas que não são do controle dele, mas dominadas por instituições financeiras e pelo capital, segundo a professora de pós-graduação em Comunicação da UFPE Nina Velasco.

“Muitas vezes o indivíduo não se dá conta que faz contratos com essas empresas ao se registrar nessas plataformas sem ler os contratos. E fazem realmente uma doação dos seus dados pessoais e desses documentos para esses grandes conglomerados”, diz a professora.

“O indivíduo tem a sensação de que tudo que está registrado na rede é acessível para ele, portanto não há nada sobre o passado dele que ele não possa resgatar”, cita Velasco. 

Ela traz como exemplo o Google Fotos, que organiza as fotos por data, pessoas, local e geram a sensação de que não precisamos mais nos preocupar em como acessar ou organizar nossos arquivos. 

“No entanto, como a gente já viu acontecer no Orkut, essas vezes não são eternas e não são infalíveis. Elas podem sim entrar em crise, elas não se responsabilizam se elas fecharem e deixarem de prestar o serviço”, explica. 

Rede social é a melhor opção para armazenar memórias?

Se você tem mais de 30 anos, certamente correu para salvar suas fotos no finado Orkut. A rede social, que inicialmente permitia a postagem de apenas 12 fotos, como tempo se tornou uma febre no Brasil para divulgação de nossos registros pessoais. Hoje em dia, Facebook e Instagram são grandes armazenadores de nossas memórias, sejam na forma de depoimentos de texto quanto em vídeos e fotos.

Entretanto, o professor Daniel B. Petry (ECA-USP), que pesquisa a evolução das mídias audiovisuais, ressalta que não devemos considerar estes serviços como um meio de armazenamento. 

“O primeiro passo é entender que rede social não é equivalente a salvar as fotos. Rede social é para publicizar (ainda que para um grupo pequeno) seus dados. É pra socializar, não para arquivar”, inclui. 

Para Petry, ao armazenar um documento, é importante levantar alguns questionamentos:

  • Se eu precisar de todos os meus dados eu consigo acessá-los?
  • Tudo que é importante está salvo? Minha conexão é rápida o suficiente para baixar todos?
  • A empresa tem uma conexão rápida o suficiente para me enviar estes dados?
  • O software que faz o download também funciona bem? 

A sugestão do professor é priorizar os serviços que permitam o acesso de outros aparelhos e, especialmente, experimentar o serviço para não ter surpresas ao recuperar arquivos. "Se roubarem seu celular/notebook agora, o que você fará para acessar e continuar o texto que está escrevendo?”, comenta. 

Muita gente recorre ao online como alternativa a fotografias em papel, mas especialistas recomendam olhar além
Muita gente recorre ao online como alternativa a fotografias em papel, mas especialistas recomendam olhar além
Foto: Reprodução / Freepic.diller

Nada é eterno

Antes a gente guardava as fotografias em papel em caixas de sapato ou álbuns, mas corria-se o risco de ter o material exposto às condições climáticas ou perdidas em um incêndio. Por isso muita gente recorre ao online como alternativa a isso. Para Velasco, da UFPE, a desmaterialização do digital, com esse sentimento de que nada pode se perder e que tudo é eterno e acessível, é uma ilusão.

"Assim como [a ilusão] que você tem poder sobre essas informações, que são colocadas em redes relacionadas a empresas internacionais, com controle e vigilância”, exemplifica a professora. 

Para Nina, a melhor forma de preservarmos aquilo que consideramos importante é fazermos edições constantes do mar de informações que produzimos. Também sugere escolher mais de um local para a preservação daquilo que realmente gostaríamos que ficasse para a posteridade. Alternativas pessoais ao serviço em nuvem são os HDs (discos) externos

“A mídia física ainda é uma das mais confiáveis em termos de resistência ao tempo, mas também não é infalível”, afirma. 

Depoimento de quem apostou demais na nuvem

O engenheiro civil Thiago Martins lamenta ter perdido parte de suas memórias de adolescência devido às volatilidades de algumas plataformas. No caso dele, isso ocorreu com o fim do Fotolog, rede social de fotos que funcionou de 2002 a 2018, em uma era pré-Instagram. 

“Eu tirei muitas fotos em 2004, quando ganhei do meu pai uma câmera e era um dos únicos adolescentes da minha escola autorizado [pelos pais] a levar o aparelho para registrar os nossos momentos, nossas zueiras”, conta Thiago. 

“Eu postava tudo no Fotolog, as festas, as reuniões para fazer trabalhos, o que aprontávamos no recreio da escola. Enfim, eram lembranças de uma época muito boa, e que acabei perdendo, já que as fotos não foram reveladas”, acrescenta.

A plataforma chegou a disponibilizar em 2016, por pouco tempo, uma ferramenta para que os antigos usuários baixassem todas as fotos, mas nem todo mundo ficou sabendo disso.

Como o Brasil atua na proteção de dados?

Desde 2011, o Brasil disponibiliza a Lei de Acesso à Informação, que garante que as informações produzidas ou custodiadas pelo poder público são públicas. Portanto, disponíveis a todos os cidadãos, exceto quando são protegidas por lei.

No entanto, outro caminho importante para preservação da memória digital do país é a parceria com instituições externas, como a Wikimedia Foundation; e o fortalecimento de redes interinstitucionais entre instituições como universidades, repositórios de dados e instituições de memória. 

A coordenadora de Cultura e Conhecimento do InternetLab, Alice de Perdigão Lana, destaca, porém, uma “notável ausência”: diferentemente do que ocorre em vários outros países, na lei brasileira não há previsão que permita expressamente a cópia para preservação, seja ela digital ou física.

“É importante que essa possibilidade seja expressamente prevista na Lei de Direitos Autorais brasileira, para dar mais segurança para as instituições de memória e todos aqueles que trabalham com preservação e proteção da memória no Brasil”, inclui Lana.

A especialista elencou algumas medidas que podem ser implementadas no Brasil para preservar melhor a memória digital do país:

  • Investir em interoperabilidade, ou seja, diversos sistemas e organizações trabalhando em conjunto, para criar e manter acervos. Exemplos disso são a Europeana, na União Europeia, e a Digital Public Library of America, nos EUA;
  • Adotar e difundir padrões e normas de preservação digital, além de padrões de metadados (informações sobre arquivos, como data de criação) e de arquitetura da informação dos repositórios digitais;
  • Priorizar formatos livres dos arquivos digitais — que permitem que os dados sejam úteis para pesquisadores e programadores, por exemplo — em vez de proprietários, que são controlados por empresas e custam dinheiro. Também cita ferramentas livres para manusear o conteúdo;
  • Privilegiar o uso de softwares livres, que podem ser adaptados por outras organizações, para favorecer a interoperabilidade entre acervos. 
Fonte: Redação Byte
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