Por que a realidade virtual ainda não é realidade para tanta gente
Idealizada há décadas, tecnologia ganhou vida nova com financiamento coletivo em 2012 que deu origem à Oculus, comprada pela Meta
Colocar um par de óculos na cara e imergir em um mundo completamente diferente — a terra dos dinossauros, o espaço sideral ou a beira do palco de um show de Paul McCartney, por exemplo — é um sonho antigo da humanidade.
No século 19, o poeta francês Antonin Artaud já falava em “realidade virtual”. Ao longo do século 20, aparelhos como estereoscópios e simuladores povoaram o presente e o imaginário do que seria o futuro — seja na ficção de filmes como Tron ou em aparelhos pioneiros como o Virtual Boy, da Nintendo, e o Power Glove. da Mattel, este último baseado nas pesquisas do futurista Jaron Lanier.
Alguns desses projetos deram tão errado que muita gente achou que era melhor deixar essa ideia para lá – o Virtual Boy, por exemplo, é até hoje um dos maiores prejuízos da história da centenária Nintendo.
Há pouco mais de dez anos, porém, a tecnologia da realidade virtual (VR, na sigla em inglês) ganhou novo fôlego: em agosto de 2012, o empreendedor americano Palmer Luckey pôs no ar uma campanha de financiamento coletivo para o DK1, aparelho que usaria o poder computacional de última geração para ajudar a criar enfim, a realidade virtual.
A campanha deu tão certo que Luckey fundou uma empresa, a Oculus, depois comprada por Mark Zuckerberg e o seu então Facebook — hoje chamado de Meta — por US$ 2 bilhões (R$ 10 bilhões, na cotação atual), em 2016.
Além disso, empresas como Sony, HTC e Google também apostaram na tecnologia, investindo bilhões para colocar óculos de realidade virtual na cabeça de qualquer pessoa. Inclusive, este final de ano viu a chegada ao mercado (americano) de dois aparelhos importantes: o PlayStation VR 2, da japonesa Sony, e o Quest Pro, da Meta.
No entanto, a despeito desses esforços, seguimos com os olhos em telas pequenas e não em “capacetes” – o que dá a sensação de que realidade virtual não emplacou, mas há quem prefira dizer que estamos apenas no começo de uma nova era. Nessa desilusão de ótica, quem é que está certo?
Copo meio cheio
Para o professor da PUC-RS André Pase, os dois. “É uma situação de copo meio cheio, meio vazio. Realidade virtual, antes do Oculus, era algo de laboratório. Hoje, você já tem um aparelho comercial que não precisa nem de joystick ou computador para ser usado. É um avanço gigante”, pondera o acadêmico. “Mas falta o que justifique que muita gente compre esse produto.”
Sócio da Arvore, startup especializada nessa tecnologia, o cineasta Ricardo Laganaro vai além, dizendo que a percepção aqui no Brasil pode ser míope.
“Não dá para comprar óculos num preço bom ou ter conteúdo decente, localizado em português, por aqui. No Brasil, de fato, a tecnologia não emplacou”, diz ele, que é também vencedor de um Leão de Veneza e de um Emmy pela experiência de VR “A Linha”.
“No entanto, é um mercado que existe: tem plataforma, tem produtoras, empresas como a nossa já operam no azul e há uma estimativa de 15 milhões de [óculos da Meta] Quests vendidos nos EUA”, pondera. É como se houvesse um par de óculos de realidade virtual a cada oito domicílios no país, e isso só considerando uma marca. Ele mesmo, porém, sabe que a tecnologia ainda tem passos a dar.
“Ainda é um mercado de nicho, como o iPod foi. E tecnologias como a realidade mista podem a vir a ser o iPhone, úteis para justificar o uso dos óculos na cara para muita gente.”
Em tempo: realidade mista, ampliada ou estendida é o nome que se dá a tecnologias que inserem camadas virtuais à frente da pessoa por meio de um aparelho, mas o mantém com visibilidade do que acontece na realidade à sua volta. O jogo Pokémon Go ou filtros do Instagram são bons exemplos disso, ainda que a quantidade de nomenclaturas seja um empecilho para o marketing (e o entendimento das pessoas).
Esse horizonte distante é uma realidade (com o perdão do trocadilho) da qual as próprias empresas estão cientes.
“Sabemos que ainda há um caminho longo para construção do metaverso, mas os últimos anos nos mostram o quão longe chegamos”, diz Caroline Dalmolin, líder de parcerias de Reality Labs para a América Latina da Meta.
A empresa prefere o termo metaverso, em voga atualmente, para descrever suas ambições virtuais. “Nossa visão para a construção do metaverso é de cinco a dez anos. Ainda estamos na fase da internet discada do seu desenvolvimento.”
Procurada pela reportagem, a Sony não cedeu entrevistas.
Obstáculos
O que falta então para esse mercado — que movimentou, segundo a consultoria Grand View Research, pouco menos de US$ 22 bilhões em 2021 (R$ 119 bilhões), só US$ 4 bilhões a menos que toda a indústria fonográfica — deslanchar de fato?
Na visão dos especialistas, o primeiro impeditivo é o caso de uso: hoje, a maior parte das experiências disponíveis com a tecnologia são voltadas a jogos, ou, pelo menos, focadas em entretenimento.
Falta algo que transforme outros aspectos da vida das pessoas — ou que deem à realidade virtual aquele espírito de “não dá para ficar sem”. “Falta o que foram o Angry Birds, o WhatsApp ou o Waze para o smartphone”, afirma Pase, da PUC-RS.
É uma discussão em que nem todos concordam. “Falta profundidade e amplitude de conteúdo à tecnologia, variado o suficiente para atender ao mercado de massa”, afirma Tuong Nguyen, analista da consultoria Gartner. “Mas a ideia de um aplicativo matador é enganosa: a realidade tem nuances e os consumidores vão querer uma combinação de aplicações que atendam melhor às suas necessidades”, diz.
A meta aqui — especialmente da empresa de Mark Zuckerberg — é levar o mundo do trabalho para essa nova dimensão. Não à toa, parcerias da Meta com a Microsoft foram anunciadas recentemente, permitindo que, em breve, pessoas participem de uma chamada do Teams com óculos na cara.
Para Pase, essa pode ser até uma ferramenta para deixar o trabalho um pouco mais fácil, enquanto empresas ainda debatem a dicotomia entre home office e sistemas presenciais.
Mas aí surge outro empecilho: equipamentos de realidade virtual puros, no qual há imersão completa, dificilmente podem ser usados por intervalos longos de tempo sem causar enjoo, dores de cabeça ou nos olhos. É algo que pode ser um problema para quem pretende trabalhar “em outro universo”.
“Saúde seguem sendo desafio para adoção, inclusive pela inclusão: se um funcionário não puder usar por mais de 30 minutos, ele estará em desvantagem potencial em relação a outro”, afima Nguyen. Na Arvore, que trabalha diariamente com a tecnologia, há formas de driblar isso: o protocolo da empresa é que ninguém pode passar mais de 45 minutos “imerso”, mas é possível retomar o uso após 15 minutos de descanso, conta Laganaro.
A aposta é que com novos aparelhos de realidade mista — como é o caso do Quest Pro, vendido por ainda inacessíveis US$ 1,5 mil (R$ 8,1 mil) nos EUA —, essa questão da saúde e do conforto deixe de ser uma barreira. Mas ainda haverá o problema das integrações: hoje, os sistemas de Sony, Meta, HTC e outros fabricantes são independentes e não conversam entre si.
Se isso é só um incômodo para o entretenimento, no universo do trabalho as coisas podem ficar bem mais complexas. “Por enquanto, os custos de pesquisa e desenvolvimento são grandes, ninguém está com dinheiro sobrando para fazer as plataformas conversarem, as empresas querem pegar seus quinhões de mercado primeiro”, afirma Laganaro.
Outro fator que afeta o mercado é a ausência da Apple, empresa que tem definido as tecnologias de eletrônicos de consumo nos últimos anos e que ainda só tateia a realidade virtual. “O fato da Apple ainda não ter um aparelho faz muita gente ficar receosa”, diz André Pase. Esse peso aumenta quando se lembra que a realidade virtual é um universo muito gráfico, setor onde a Apple domina a computação há décadas.
Próximos passos
Muitos são os empecilhos, mas todas as pessoas escutadas para essa reportagem são unânimes: a tecnologia vai deslanchar no intervalo de cinco a dez anos. Há motivos para acreditar nisso: alguns esforços de criação de padrões de interoperabilidade, como fóruns de tecnologia, estão sendo criados.
A parceria entre Meta e Microsoft, duas gigantes do setor, mostra que há espaço para o diálogo. Além disso, com a popularização da realidade mista, a imersão pode ficar mais agradável e até gerar casos de uso mais interessantes, superando de fato as limitações do mundo real.
“Já começamos a testar o Quest Pro. Uma das coisas mais legais é colocar ele na cara e simular que você tem três monitores no seu computador. Depois disso, se limitar a uma telinha só fica meio chato”, comenta Laganaro.
Há ainda a expectativa de que, conforme o tempo for passando, componentes e aparelhos vão ficando mais baratos, tornando a realidade mista algo acessível.
No entanto, para que tudo isso funcione, são necessários investimentos — e o mar não está para peixe no mercado de tecnologia.
Com menor liquidez no mercado e alta nas taxas de juros globais, o apetite para risco dos investidores está cada vez menor e isso impacta diretamente as empresas inovadoras. A Meta que o diga: demitiu globalmente 11 mil pessoas, em um gesto que foi seguido por outras gigantes de tecnologia.
Pior: depois de chegar a valer US$ 1 trilhão (R$ 5,4 trilhões), a companhia hoje está avaliada em US$ 300 bilhões (R$ 1,6 trilhão), muito por conta do mau humor do mercado quanto à guinada de Zuckerberg em transformar sua empresa em um ícone do metaverso. Ao mesmo tempo, seus negócios principais (Facebook e Instagram) foram ameaçados pela chinesa Bytedance, do TikTok.
Na empresa, o discurso oficial é que será uma época dura. “Nossos investimentos estão voltados para liderar a próxima grande evolução da computação e isso demanda grandes esforços”, reforça Dalmolin, da Meta.
“A Meta está trocando o motor do carro com o carro andando. Zuckerberg sabe que precisa ir para a frente, mas é difícil”, pondera André Pase. De maneira enigmática, Nguyen, do Gartner, questiona se este é o caminho certo: “é mais importante focar no valor que a empresa traz, em vez do nome que você atribui à tecnologia ou tendência que possibilita esse valor”.
Se a aposta vai dar certo — e outras empresas entrarão no barco, só o futuro dirá. Por agora, talvez pensar no futuro da realidade virtual ainda seja, como há muitas décadas, uma missão do imaginário.