Microtrabalhadores treinam IAs até com fotos de cocô, por salários superbaixos
Brasileiros que fazem bicos de "ajuda a algoritmos" em grandes plataformas passam por violações de privacidade e exaustão psicológica
Criações de inteligências artificiais (IA), como o ChatGPT, e a facilidade com que achamos dados em buscadores de internet, como o Google e Bing, podem impressionar. Entretanto, o que poucos sabem é o quanto esses potentes algoritmos dependem de pessoas de carne e osso para funcionar.
E não, não estamos falando de cargos sofisticados na indústria da tecnologia. Quem sustenta grande parte das tecnologias mais populares da atualidade são os microtrabalhadores, pessoas que fazem bicos de "ajuda a algoritmos".
Matheus Vianna Braz, psicólogo e professor do Departamento de Psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), revelou em entrevista exclusiva ao Byte que esses profissionais precisam submeter até mesmo fotos de cocô de cachorro a este serviço, considerado altamente precarizado. Vianna Braz estuda o papel do trabalho humano na economia das plataformas digitais.
Os microtrabalhadores precisam confirmar, em alguma instância, as decisões tomadas pelos algoritmos. A ponte entre modelos que precisam de treinamento e esses "humanos verificadores" é feita por meio de plataformas de freelancers.
A maioria das tarefas são simples, como tirar fotos de um objeto doméstico de vários ângulos, checar se um modelo de inteligência artificial deu uma resposta satisfatória a uma pergunta, ou se um algoritmo transcreveu certo o que está sendo falado em um áudio. Já outras incluem classificação de vídeos pornográficos e moderação de conteúdos violentos, que podem ter efeitos psicológicos desgastantes.
Nas pesquisas em que colaborou, Vianna Braz descobriu que, além do caráter psicologicamente pesado que os bicos do microtrabalho podem carregar, o próprio mercado, instável, competitivo e sem nenhuma garantia, isola os trabalhadores, paga mal e provoca um estado de ansiedade constante.
Muitos trabalham na madrugada, que é o horário em que as plataformas sediadas no exterior publicam as funções mais disputadas, e tiram pouco menos de R$ 600 por mês trabalhando cerca de 15 horas por semana. R$ 1.866 é o rendimento médio mensal dos trabalhadores, contando com todas suas fontes de renda. Veja abaixo a entrevista com o pesquisador.
Byte: Quem são essas pessoas por trás dos algoritmos?
Vianna Braz: Bem, sabemos que os sistemas de recomendação, entre outros, que utilizamos na internet, dependem de algoritmos. O que muitos não sabem é que por trás desses algoritmos, há pessoas envolvidas no processo, o qual pode parecer totalmente automatizado. Essas pessoas são fundamentais para o funcionamento e aprimoramento desses sistemas.
Byte: Como é esse sistema de trabalho? Como eles são contratados e quanto ganham?
Vianna Braz: Essas pessoas são contratadas para executar tarefas específicas, muitas vezes através de plataformas online que terceirizam esses serviços para empresas de tecnologia. No Brasil, temos ao menos 54 dessas plataformas.
Os trabalhos variam desde a preparação de dados, como para reconhecimento facial, até a verificação dos resultados gerados pelos algoritmos. Um exemplo é a moderação de conteúdo feita por trabalhadores quenianos para a OpenAI, onde eram pagos cerca de US$ 1,32 (R$ 6,70) por hora.
Byte: Há diferenças de trabalhos mais e menos desagradáveis? Se sim, quem fica com os "menos piores"?
Vianna Braz: Sim, há uma variedade de tarefas, algumas mais desagradáveis como moderação de conteúdo violento ou pornográfico. Infelizmente, muitas vezes, quem acaba fazendo essas tarefas são pessoas que precisam mais de dinheiro, pois são tarefas mais bem pagas.
É claro que tem uma questão moral. Alguns trabalhadores se recusam a fazer certo tipo de serviço, mesmo precisando do dinheiro, por causa de princípios.
Mas o processo todo cria uma dependência maior em relação às plataformas e pode levar a um isolamento dos trabalhadores, pois precisam seguir regras estritas e não podem compartilhar muito sobre o que fazem.
Byte: E sobre os pagamentos, quais são os valores mais altos e mais baixos que um microtrabalhador pode receber?
Vianna Braz: A remuneração varia bastante dependendo da tarefa e da plataforma. Há projetos que pagam centavos, enquanto outros podem pagar até cinco dólares (R$ 25) por hora. A variação é grande e a instabilidade desse mercado é um problema.
Conheço um caso de uma trabalhadora que ganhou uma boa quantia em um mês, tomou decisões de vida baseadas nisso, como largar o emprego. Mas nos meses seguintes, a renda dela caiu drasticamente, mostrando a incerteza desse tipo de trabalho.
Esses trabalhadores são contratados geralmente como freelancers, sem vínculo empregatício. A remuneração varia de acordo com a tarefa e a plataforma.
Byte: Quais os desafios em pesquisar esse tema?
Vianna Braz: A dificuldade estava em localizar e contatar esses trabalhadores. Realizamos uma etnografia digital e individualmente convidamos mais de 800 trabalhadores para entrevistas, utilizando o WhatsApp. Desses 800, somente 30 aceitaram falar conosco.
Além disso, há um dilema entre os trabalhadores sobre expor ou não as condições de trabalho, já que a exposição pode aumentar a visibilidade do mercado, trazer competição e reduzir os ganhos.
Byte: Os trabalhadores precisam ceder dados pessoais de alguma forma?
Vianna Braz: Sim, algumas tarefas exigem informações pessoais, como fotos da casa. Há uma preocupação, pois as plataformas sequer têm controle rigoroso sobre a idade dos trabalhadores.
Em alguns casos, os trabalhadores criam múltiplas contas para acessar mais tarefas, usando o CPF do pai, da mãe, o que evidencia falta de controle sobre quem está fornecendo os dados.
Byte: Qual foi o caso que mais te chocou?
Vianna Braz: Um caso marcante foi o de uma trabalhadora de mais de 50 anos que participou de um projeto para treinar robôs aspiradores. Ela tinha que tirar fotos da casa e, em determinado momento, precisava de fotos de cocô de cachorro, porque era algo que o aspirador automático tinha que aprender a detectar.
Ela tirou fotos do cocô do próprio cachorro em vários lugares de sua casa e, no dia seguinte, quando precisou de mais imagens mas já não conseguiu usar o mesmo cocô de ontem, foi para a casa da vizinha e pediu o cocô do cachorro da vizinha "emprestado" para completar a tarefa.
Byte: Qual o perfil clássico da pessoa que busca esse tipo de trabalho?
Vianna Braz: O perfil predominante são pessoas jovens, entre 18 a 35 anos, sendo quase 70% mulheres— um dado único em nossa pesquisa quando comparado a outros estudos, que apontam mais homens.
A maioria é casada e possui um nível de escolaridade superior ao da população geral, com mais da metade com ensino superior completo. São profissionais de diversas áreas, como engenharia, direito, fisioterapia e psicologia, que buscam um incremento na renda ou uma alternativa devido ao desemprego.
A renda média desses trabalhadores é de R$ 1.866, sendo que nas plataformas, a média é de R$ 585 por mês, com uma carga horária de cerca de 15 horas semanais.
Byte: Qual o caminho clássico para chegar nesses empregos? Indicação de amigo, um primo?
Vianna Braz: Muitos chegam a esses trabalhos por pesquisa própria online, buscando por "renda extra online", o que os leva a grupos no Telegram ou WhatsApp que discutem essas plataformas. Alguns ouvem sobre essas oportunidades através de colegas ou comunidades.
Há também um crescente mercado de "mentores" vendendo cursos sobre como ganhar dinheiro nessas plataformas, o que pode ser problemático, pois as expectativas de ganhos fáceis nem sempre correspondem à realidade, que exige muito trabalho e aprendizado para navegar nessas plataformas globais.
Byte: Como uma pessoa que realiza esse trabalho sai dele depois? Quais os traumas possíveis?
Vianna Braz: A instabilidade nas plataformas gera ansiedade, pois os trabalhadores podem ser bloqueados sem justificativa. Isso é agravado pela natureza repetitiva e, às vezes, monótona do trabalho, que pode causar estresse e exaustão.
Há relatos de trabalhadores que enfrentaram problemas de saúde devido ao excesso de trabalho. A falta de suporte e a individualização do sofrimento são desafios adicionais, com alguns encontrando apoio em grupos de colegas, onde compartilham experiências e aliviam o estresse através do humor.
Byte: O quanto você acha que uma IA como o ChatGPT depende desses trabalhadores? Em porcentagem, o quanto gerado é fruto deles?
Vianna Braz: É difícil quantificar exatamente, mas é evidente que há uma grande dependência. Por exemplo, há uma ferramenta do Google, chamada Google Duplex, que supostamente usava IA para agendar reservas em restaurantes.
No entanto, em 2019, descobriu-se que menos de 40% das reservas eram feitas de forma automatizada; a maioria era feita manualmente por trabalhadores.
Byte: O que diferencia esse trabalho de aplicativos como os de entrega ou de corridas?
Vianna Braz: A principal diferença é a geolocalização. No caso dos apps de entrega, o trabalhador precisa estar em um local específico, enquanto no microtrabalho online, isso não é necessário.
No entanto, há uma territorialização das condições de trabalho, pois a disponibilidade de tarefas e os melhores horários para trabalhar são influenciados pela localização da sede das plataformas, majoritariamente no hemisfério norte.
Por exemplo, muitos trabalhadores no Brasil trabalham entre 10 da noite e 5 da manhã para pegar as melhores tarefas disponíveis.
Byte: Os três poderes do Brasil estão atentos a isso? E no exterior, o que está sendo feito?
Vianna Braz: No Brasil, estamos um pouco atrasados nessa agenda. Há avanços em outros lugares, como na Europa, onde estão sendo discutidos princípios de trabalho justo, transparência, privacidade, entre outros, para regular essas plataformas.
A ideia é garantir, por exemplo, que os trabalhadores saibam por que foram reprovados em uma tarefa ou bloqueados na plataforma, proporcionando um ambiente de trabalho mais justo.