Coreia do Sul: por dentro da primeira "nação digital"
- Alexandre Rodrigues
Tudo começou em 1994. Enquanto a maior parte do mundo apenas ouvia falar da internet pela primeira vez, o governo da Coreia do Sul decidiu investir bilhões para popularizá-la. A idéia era recriar o país digitalmente, conectando governo e população por meio de redes e dispositivos.
Dezesseis anos depois, o resultado é a nação mais conectada do mundo. A web, que chega a 67% dos endereços nos Estados Unidos, país criador da internet, está em 97% das residências sul-coreanas. O país se tornou um mercado gigantesco para eletrônicos e games. Companhias sul-coreanas, como Samsung e LG, estão na linha de frente do mercado mundial.
Social, economica e politicamente, a Coreia do Sul é uma "nação digital". Enquanto seu Produto Interno Bruto (PIB), de US$ 1,31 trilhão, é o 14º maior do mundo, na proporção de pessoas com acesso a banda larga, 31%, é o sétimo. O governo iniciou em 2009 o investimento de US$ 1 bilhão - a iniciativa privada gastará outros US$ 21 bilhões - para ampliar a conexão da população à internet. A promessa é de que em 2012, em qualquer parte da Coreia do Sul, alguém poderá, por exemplo, baixar um arquivo com um filme de duas horas de duração em apenas 12 segundos.
Na educação, as crianças são acostumadas desde cedo à internet e aos computadores. O programa mais ambicioso é acabar com o ensino nos livros de papel nos próximos três anos. O Programa Livro Digital, criado em 2007 pelo governo, desenvolve livros interativos para distribuição nas escolas. O objetivo é que em 2013 todos os alunos sul-coreanos estudem apenas com livros digitais.
A seguir mostramos três aspectos, com vantagens e desvantagens, do que significa ser um país digital.
1 - Cyworld, a "realidade paralela"
O avanço das redes sociais fez do Orkut - no Brasil e na Índia - e do Facebook - no resto do mundo - fenômenos da internet. Estima-se que 40 milhões de brasileiros estejam no primeiro e 9 milhões no segundo, empatado com o Twitter. São números consideráveis, mas ainda pequenos em relação à população brasileira, de 190 milhões. E distantes, muito distantes, da penetração de um fenômeno chamado Cyworld.
Considerado uma mistura de rede social com "universo paralelo", o site reúne cerca da metade da população da Coreia do Sul - estima-se que 90% dos habitantes entre 20 e 30 anos estão cadastrados. Lançado em 1999, é tão popular que se tornou comum, por exemplo, que no cartão de visitas conste o endereço do perfil no serviço em vez de um número de telefone. Mesmo entrevistas de emprego podem ocorrer nas páginas do site, que em vez de quase estáticas como em outros sites de relacionamentos, podem ser decoradas como se fossem um ambiente virtual.
"A Coreia do Sul, como muito de seus vizinhos asiáticos, pode ser classificada como um país coletivista", diz o pesquisador Jaz Hee-jeong Choi, da Universidade australiana de Queensland, autor de um livro, Living in Cyworld, sobre os efeitos do site na sociedade coreana.
Dentro do Cyworld, notou ele, surgiu o que chamou de "transjuventude". São jovens que vivem parcialmente online e parcialmente no mundo real. Mas uma pesquisa descobriu que, em média, eles conheceram 55% dos amigos na rede social.
O sucesso do Cyworld é tão grande que o site também criou um problema social. A população costuma publicar grandes quantidades de dados pessoais em seus perfis, depois utilizados por criminosos. E mesmo que as autoridades tenham feito alertas a respeito, apenas uma em cada cinco pessoas costuma proteger suas informações.
2 - Um país na internet
Quem quiser entender alguns fenômenos esperados apenas para o futuro, mesmo nos países desenvolvidos, pode visitar a Coreia do Sul para conhecê-los. Onde mais 43% da população têm um blog? Ou há praticamente um telefone celular para cada habitante?
Estudos mostram que a adesão não é completa. Principalmente entre os mais velhos, ainda há uma certa resistência. Mas entre os jovens a adesão foi completa. A partir dos 3 anos de idade as crianças já são treinadas para usar a web.
O que não quer dizer que não existam problemas. Um deles: graças ao uso disseminado do software ActiveX, da Microsoft, o Internet Explorer ainda é o único navegador que funciona corretamente. Em todos os cafés com internet, o Windows XP é o único sistema operacional. Bill Gates e Steve Ballmer agradecem.
E, por fim, um fator preocupante: apesar de ser uma democracia, o país tem uma lei para a internet que dá poderes à polícia só comparáveis a regimes ditatoriais. Todos os principais sites, que recebem mais de 200 mil visitantes por dia, são obrigados por lei a exigir que os usuários digitem seus números de identidade virtual - 13 algarismos que revelam data de nascimento, sexo e nome. Além de aumentar o risco de fraudes virtuais, a obrigação acaba com o anonimato na internet. Qualquer um está vulnerável ao governo, que só precisa requistar os dados aos sites na investigação de um crime, por exemplo.
3 - O lado sombrio: os viciados
Kim Jae-beom e Kim Yun-jeong se conheceram pela internet. Sua primeira filha, Kim Sa-rang, nasceu prematuramente em julho de 2009, recebendo um nome que significa "amor" em coreano. A história, que parecia um romance cibernético com final feliz, tornou-se uma tragédia em setembro.
Comunicada da morte da menina, supostamente por causas naturais, a polícia suspeitou de sua magreza excessiva e fez a descoberta que chocou o país: o casal Kim deixou a criança morrer de desnutrição depois de passar noite após noite em um "PC bang", como são chamados os cibercafés que ficam abertos 24 horas por dia. Ambos estavam obcecados por um jogo, "Prius Online", que permite a seus participantes criarem uma menina virtual, ajudando-a a desenvolver emoções. Estão presos desde março.
O caso se tornou sintomático do mais grave problema resultante da transformação da Coreia do Sul: o vício em internet.
Jogar é a principal atividade na web para estimados 17 milhões de sul-coreanos. Têm, em sua maioria, entre 13 e 30 anos. Na superlotada Seul, é comum encontrá-los nos superlotados "PC bangs", para onde se dirigem depois da escola e do trabalho, para maratonas que chegam a durar 18 horas seguidas. Há 21,5 mil "PC bangs" no país.
A indústria de games sul-coreana movimenta cerca de US$ 5 bilhões por ano. Trinta mil empresas criam e desenvolvem videogames no país. Jogar é uma atividade social, praticada quase sempre online - devido a ressentimentos culturais, os consoles das japonesas Nintendo e Sony, fabricante do Playstation, não são populares entre os jogadores.
Nos "PC bangs", jovens não apenas jogam como conversam, bebem café e não raro fazem refeições. Se divertem em partidas de futebol virtual, "Starcraft" e "World of Warcraft". Empresas patrocinam equipes de jogadores, que têm fama nacional e chegam a ganhar o equivalente a R$ 200 mil por ano.
A contrapartida sombria: o governo local estima que dois milhões de sul-coreanos são viciados em internet. São comuns crimes envolvendo videogames, inclusive o caso de um jovem que matou a própria mãe - que não lhe dera dinheiro - e depois foi a um cibercafé para continuar jogando.
"A situação é séria", disse à CNN Lee Dong-hun, professor assistente da Universidade Nacional de Pusan. "É um complicado problema social e psicológico".
Desde abril, por ordem do governo, os jogos mais populares são bloqueados seis horas por dia para que os jogadores não permaneçam conectados 24 horas consecutivas. Em toda a Coreia do Sul foram abertos cerca de mil centros de tratamento para o vício em internet - como comparação, só existe um nos Estados Unidos. Campanhas educacionais e serviços de aconselhamento por telefone oferecem apoio aos viciados.
O problema se tornou tão profundo na sociedade sul-coreana que se estuda considerar o vício em internet um equivalente do alcoolismo. Em caso de crimes, seria considerado uma atenuante.