Ana Paula: de vítima da violência à militância em Rede

Depois de precisar do auxílio da Rede de Proteção contra o Genocídio, ativista da zona oeste de SP entrou para o coletivo e hoje é uma líder

27 abr 2022 - 10h31
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Os desafios de uma mulher pobre, preta e periférica começam antes mesmo de ela vir ao mundo. Não foi diferente com a articuladora da Rede Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio Ana Paula Carneiro. Há 43 anos, sua mãe saiu de Pernambuco, fugindo das agressões de um homem com quem se relacionou, lhe carregando ainda na barriga.

As adversidades, que a acompanham desde antes de nascer, e a eterna convivência com o lado mais difícil da vida, fizeram despertar nela as suas duas principais características: a luta e a empatia. Reconhecida pela comunidade do Sapé, e outras quebradas da região do  Butantã, zona oeste da cidade de São Paulo, como uma liderança local, Ana Paula rechaça o título.

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“Eu ajudo de muitas formas muitas pessoas daqui. Seja pelo trabalho que faço na Rede ou por outras ações, como doações de alimentos ou atuação nas creches, sempre bate gente lá em casa pedindo ajuda”, revela a ativista, que já recebeu inúmeros convites para entrar em partidos políticos devido a suas ações e popularidade, mas que tem a resposta negativa sempre na ponta da língua: “não gosto de me envolver com essas coisas”.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

O espírito colaborativo vem de uma vivência de privações. Infância e juventude lhe foram tiradas por uma imposição da vida, e no lugar foram postas obrigações e responsabilidades. A segunda filha de uma família de nove irmãos teve que cuidar da casa e dos mais novos desde criança e por isso não tinha tempo de exercer o mais nobre dos direitos infantis: brincar.

“Sou filha de uma mãe solteira que passava o dia fora de casa trabalhando como empregada doméstica e a regra lá em casa era que os mais velhos tinham que cuidar dos mais novos. Eu tinha que fazer comida, cuidar da casa e dos meus irmãos. Não tive tempo de ser criança”, conta Ana Paula.

A adolescência também foi mais curta do que deveria. No pouco tempo em que pode viver essa fase da vida, Ana Paula teve um grupo de rap feminino e foi para as ruas protestar contra a repressão e violência contra pessoas da sua região. 

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“Em 1996 um garoto da São Remo (favela localizada ao lado da Universidade de São Paulo, zona oeste da capital paulista) foi nadar na raia da USP. Aqui nas comunidades não têm lazer, clube, piscina até hoje. Naquela época não tinha muros e a molecada ia nadar lá. Os seguranças mataram esse menino e a gente fez protesto nas ruas do campus até o corpo do menino aparecer”, lembra.

Porém a chegada do primeiro filho, aos 16 anos, fez com que a sua juventude fosse abreviada e as tarefas que tinha desde a infância foram retomadas em outra posição. “Quando uma menina preta de comunidade é mãe muito nova, a vida muda completamente. Eu tive que largar a escola na quinta série e só voltei a estudar para fazer um supletivo quando meu filho mais velho já tinha 10 anos. Trabalhava de dia com serviços gerais e estudava à noite”, conta Ana Paula, que hoje está desempregada e tem quatro filhos, o mais velho com 24 anos e a mais nova com um ano e quatro meses, além de uma neta de dois anos.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

A injustiça que alimentou a militância

Ana Paula guarda anotado em um caderno a data 19 de julho de 2020. Ela diz que é para não esquecer do dia que mudou a sua vida. No final da tarde daquele domingo, ela voltava para sua residência com o marido de uma confraternização na casa de amigos, quando duas viaturas da Rocam (Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas) adentraram a comunidade em perseguição a um motociclista. Uma das motos dos policiais caiu, mas mesmo assim a ação policial continuou.

“Eles não conseguiram pegar o rapaz e aí voltaram para a comunidade dando tiros a esmo. Essas balas atingiram algumas pessoas, dentre elas meu marido. Ele foi atingido com um tiro na barriga que perfurou seu intestino e parte do pulmão. Ele passou quase quatro meses entre a vida e a morte na UTI, e eu nesta época estava grávida de seis meses da minha filha mais nova”. O marido de Ana Paula não morreu, mas ainda lida com as sequelas.

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Mesmo tendo um histórico de lutas e batalhas vencidas na vida até aquele momento, Ana Paula se sentiu sozinha e desamparada. Entre o sentimento de revolta com o Estado, por ter baleado o seu marido, e o sentimento de impotência, por não ter dinheiro para contratar um advogado e correr atrás dos seus direitos, ela conseguiu amparo na Rede Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio.

“O trabalho da Rede, para mim, foi muito importante. Eles acompanharam meu caso do começo até o fim. E ainda nem terminou. Eles (Tribunal de Justiça Militar) querem arquivar o caso, mas estamos lutando para que não se encerre dessa maneira. Os policiais que fizeram isso com o meu marido ainda estão soltos e exercendo o mesmo tipo de serviço. Quem me garante que eles não poderão fazer isso novamente com outras pessoas?”, questiona. 

Ana Paula resolveu agradecer o apoio que recebeu dos articuladores da Rede se colocando à disposição para trabalhar junto deles. E assim, há pouco mais de um ano, a vida dela também passou a ser ajudar famílias que precisam de diferentes tipos de auxílio quando ficam desamparadas pelos órgãos do Estado.

“Eu tento explicar o que é o trabalho da Rede e conto que eu mesma já recebi a ajuda deles. Muitas vezes o meu trabalho é conversar com as pessoas da comunidade que estão passando por alguma situação de parente preso injustamente e ofereço um apoio psicológico para as pessoas que estão desamparadas naquele momento”, explica.

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“Ela é um tipo de revolucionária desde a sua juventude. Passou por muita coisa e casou muito cedo, por exemplo. Ana Paula é um símbolo honesto do retrato que é a mulher negra periférica do Brasil”, analisa Marisa Feffermann, articuladora e uma das criadoras da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio.

Um dos casos onde o trabalho de Ana Paula foi fundamental foi quando dois rapazes, que voltavam de um passeio de moto pela rodovia Régis Bittencourt, bateram na traseira do carro de uma delegada da Polícia Civil. Depois da colisão, os jovens pararam em um posto de gasolina para abastecer as motocicletas e receberam voz de prisão por tentativa de sequestro.

“Aquilo foi um absurdo, mas conseguimos mostrar como aquela prisão foi uma sequência de abusos e pouco mais de um mês depois os garotos foram soltos”, lembra. “A gente fica feliz e a família nos agradece, mas não poderíamos deixar passar uma coisa dessas”, complementa.

Ana Paula e a colega Marisa Feffermann
Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Trabalho em rede 

Surgida através da junção de outras iniciativas que promoviam o debate da defesa dos direitos humanos no país e o descaso do poder público em relação a parcela mais pobre da sociedade, a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio tem como eixos fundamentais as iniciativas de poder popular, o trabalho nos territórios perifércos e o trabalho em rede em diferentes áreas.

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“A Rede vem de um contexto de aglutinar o que já existia. Muito de nós viemos dos movimentos de luta antimanicomial, contra o gencídio negro, tinha o Tribunal Popular, o Comitê Contra o Genocídio. Não veio do nada, veio de uma perspectiva de se unir de alguma forma”, explica Feffermann.

Em um seminário, no começo de 2017, na Faculdade de Direito da USP, onde participaram mais de 80 movimentos sociais e ativistas de diferentes países do mundo, que nasceu o embrião do que viria a ser a  Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio. 

“A Rede é suprapartidária e a gente que política é feita todos os dias e não apenas de quatro em quatro anos. Através da articulação de coletivos junto ao poder público e nesse trabalho de confiança que a gente faz junto às comunidades onde a gente começa a atuar nos casos de violação de direitos que ocorrem nos territórios”, comenta Marisa.

Foto: Daniel Arroyo/Ponte

Ana Paula lembra que o coletivo sempre precisa de novos voluntários: “é importante que as pessoas se organizem. Profissionais que possam nos auxiliar na área jurídica, de assistência psicológica e social às famílias são sempre necessários”. “Precisamos de gente que queira se ‘enredar’”, resume Marisa, “inclusive gente da área de tecnologia, que possa nos ajudar a colocar projetos digitais no ar”.

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Para o resto de 2022, Marisa prevê muito trabalho para a Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídioi: “Estamos em um momento que se escancarou a pobreza e a desigualdade social. Temos a perspectiva de resistência nos territórios e com o agrupamento de vários saberes. Neste sentido queremos expandir o nosso trabalho. Recebemos alguns apoios esse ano que nos dão a possibilidade de iniciar um ciclo de cinema nas comunidades em relação aos direitos humanos, estamos montando um projeto de graffiti no território, para resignificarmos esses lugares como bons para se viver”

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