O que o primeiro cocô do bebê pode revelar sobre a saúde dele no futuro

Os cientistas pesquisam a influência do microbioma intestinal na saúde dos adultos há algum tempo. Agora, começa a ser estudado o microbioma das crianças e já surgiram as primeiras descobertas neste campo.

6 dez 2025 - 19h41
Pesquisas científicas estão revelando os surpreendentes impactos de tudo o que passa pelo intestino dos bebês nos primeiros dias após o nascimento
Pesquisas científicas estão revelando os surpreendentes impactos de tudo o que passa pelo intestino dos bebês nos primeiros dias após o nascimento
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O ano é 2017. Dois técnicos do laboratório de patologia do Queen's Hospital de Londres aguardam ansiosamente o correio do dia.

Em um dia bom, o laboratório pode receber 50 pacotes individuais, firmemente embalados, cada um contendo um tesouro: uma minúscula amostra de cocô de bebê, cuidadosamente raspada das fraldas de crianças recém-nascidas pelos seus pais amorosos.

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Estes técnicos são os soldados da linha de frente do estudo denominado Bioma do Bebê. Seu objetivo é compreender como o microbioma intestinal dos bebês (os trilhões de micróbios que vivem no seu trato digestivo) afetam sua saúde futura.

Entre 2016 e 2017, o laboratório analisou as fezes de 3,5 mil recém-nascidos. É muito cocô, mas os resultados foram reveladores.

"Somente em cerca de três ou quatro dias após o parto, você começa a ter realmente uma boa assinatura dos micróbios no intestino. Eles levam dois dias para começar a colonização", explica o professor de epidemiologia de doenças infecciosas Nigel Field, do University College de Londres, chefe do projeto Bioma do Bebê.

"Quando você nasce, é essencialmente estéril", explica ele.

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"Por isso, este é um momento extraordinário para o sistema imunológico, pois, até aquele momento, as superfícies corporais não entram em contato com micróbios."

Todos nós, depois de passarmos pelos primeiros dias de vida, desenvolvemos nosso microbioma intestinal. Os cientistas acreditam que essa comunidade de bactérias, fungos e vírus desempenha papel fundamental na nossa saúde.

Na idade adulta, o microbioma intestinal ajuda a decompor as fibras de difícil digestão e fornece as enzimas necessárias para sintetizar certas vitaminas.

Esses micro-organismos nos protegem contra patógenos nocivos, simplesmente por estarem ali. Alguns deles até liberam antibióticos naturais para matar os invasores. E os benefícios do microbioma intestinal saudável vão muito além disso.

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Pesquisas recentes indicam que o bom funcionamento do microbioma intestinal poderá proteger contra condições como ansiedade, depressão e até doenças neurodegenerativas, como o mal de Alzheimer.

Mas o outro lado da moeda é que o microbioma intestinal "não saudável" na idade adulta está relacionado a uma longa lista de condições, como doenças cardiovasculares, câncer colorretal, doença renal crônica, diabetes, doença intestinal inflamatória e obesidade.

Os cientistas já realizaram muitos estudos sobre a influência das bactérias intestinais na saúde dos adultos. Mas, até recentemente, eles tinham pouco conhecimento sobre o seu impacto na infância.

Agora, isso começou a mudar.

Futuramente, os médicos poderão intervir com precisão no microbioma para influenciar o intestino dos bebês
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Os primeiros micróbios que colonizam o intestino do bebê são como os arquitetos do sistema imunológico", segundo a professora Archita Mishra, da Universidade de Sydney, na Austrália. Ela estuda o papel do microbioma no desenvolvimento imunológico entre recém-nascidos.

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"Eles ajudam a 'treinar' o corpo a diferenciar amigos e inimigos, ensinando as células imunológicas a tolerar antígenos alimentares e micróbios inofensivos, preparando defesas contra os patógenos", explica ela.

Mishra afirma que as comunidades bacterianas que se estabelecem nos primeiros seis a 12 meses de vida são responsáveis pelo risco de alergias, pela reação das crianças às vacinas e pelo funcionamento da barreira intestinal (a camada que separa o conteúdo do intestino do resto do corpo).

"Aparentemente, os primeiros dias de vida são uma janela em que o microbioma intestinal deixa uma marca que dura décadas", segundo a professora.

Rosto cheio de cocô

De forma geral, acredita-se que a placenta seja uma região livre de micro-organismos. Ou seja, os bebês não têm microbioma intestinal quando estão dentro do útero.

Mas, aparentemente, eles herdam a maior parte das bactérias do trato digestivo da mãe — e não da vagina, como se acreditava anteriormente.

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"A natureza tem um método muito refinado de criar o microbioma intestinal em bebês recém-nascidos", explica o professor Steven Leach, especializado em microbioma intestinal, da Universidade de Nova Gales do Sul, em Sydney.

"Se você pensar no processo do parto, o bebê nasce com a cabeça voltada para baixo, de frente para a espinha da mãe", prossegue ele.

"Por isso, observando a anatomia, a cabeça do bebê está retirando o conteúdo do intestino da mãe. Fundamentalmente, quando o bebê nasce, ele está com o rosto cheio de cocô."

Aparentemente, as bactérias intestinais começam a influenciar nossa saúde praticamente no momento em que nascemos.

As pesquisas de Field sobre as fezes dos bebês, por exemplo, demonstraram que ter as bactérias intestinais corretas nos primeiros dias de vida poderá ajudar a proteger os bebês contra infecções virais na infância.

A equipe analisou o cocô de 600 bebês com quatro, sete e 21 dias de vida. Alguns deles foram acompanhados aos seis meses e um ano de idade.

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"A maior diferença, de fato, é na forma do parto", segundo Field. "Os bebês que nascem de cesariana apresentam muitas diferenças em relação aos nascidos de parto normal."

Isso faz sentido, pois os bebês nascidos de cesariana não têm o mesmo "rosto cheio de cocô" dos que nascem de parto natural.

É claro que a cesariana é um procedimento médico frequentemente necessário para salvar vidas. Mas as pesquisas demonstram que os bebês que nascem desta forma perdem bactérias benéficas que poderiam protegê-los contra infecções respiratórias.

O estudo de 2019 concluiu que, na primeira semana após o parto, uma das três principais espécies pioneiras de bactérias normalmente aparece no intestino do bebê: Bifidobacterium longum (B. longum), Bifidobacterium breve (B. breve) ou Enterococcus faecalis (E .faecalis).

"A espécie que for encontrada define a trajetória para as outras espécies que irão colonizar o bebê", segundo Field.

Os cientistas estão apenas começando a conhecer em detalhes as bactérias presentes no intestino dos bebês
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

No sétimo dia, bebês nascidos de parto normal costumam ter B. longum ou B. breve no seu trato digestivo. Já os nascidos de cesariana apresentam maior propensão a serem colonizados por E. faecalis.

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O microbioma intestinal de bebês nascidos de parto normal costuma coincidir com o das mães. Isso confirma que as bactérias são transmitidas principalmente pelo intestino da mãe, não pela vagina.

Paralelamente, os bebês nascidos de cesariana apresentaram mais bactérias associadas ao ambiente hospitalar.

"E. faecalis é uma bactéria associada a infecções oportunistas", explica Field. "Por isso, se o seu sistema imunológico não estiver em bom funcionamento, ela pode causar doenças."

Os pesquisadores concluíram que a diferença das bactérias intestinais entre bebês nascidos de parto normal e de cesariana, em grande parte, desaparecem quando a criança completa um ano de idade.

Mas existem sinais de que ter boas bactérias desde o parto pode oferecer benefícios à saúde dos bebês.

A equipe acompanhou mais de 1 mil bebês para saber se algum deles passou por internação hospitalar.

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"Conseguimos observar que os bebês cujo intestino foi dominado por B. longum tinham cerca de metade da probabilidade de internação hospitalar por infecções do trato respiratório nos dois primeiros anos de vida, em comparação com os bebês que tinham B. breve e E. faecalis", segundo Field.

Em outras palavras, ter B. longum aparentemente protege alguns dos bebês nascidos de parto normal contra condições respiratórias.

É possível que a ausência de bactérias intestinais benéficas, como B. longum, explique por que os bebês nascidos de cesariana apresentam risco levemente elevado de desenvolver certas condições inflamatórias, como asma, alergias, doenças autoimunes e obesidade. Mas é preciso realizar mais estudos para confirmar esta possibilidade.

A digestão dos açúcares

Não se sabe por que as bactérias intestinais do bebê podem protegê-los contra infecções. Mas uma das principais teorias é que Bifidobacterium, como B. longum, ou outra bactéria benéfica chamada Lactobacillus são especialistas em decompor os açúcares complexos encontrados no leite humano, conhecidos como oligossacarídeos.

Esses açúcares são importantes componentes do leite de peito humano, mas as enzimas do bebê não conseguem digeri-las.

B. longum transforma os açúcares em moléculas chamadas ácidos graxos de cadeia curta (AGCC, na sigla em inglês). Acredita-se que essas moléculas regulem o sistema imunológico, potencialmente ajudando o bebê a combater melhor eventuais infecções.

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Os AGCC também podem ajudar a ensinar o sistema imunológico do bebê a ignorar e tolerar estímulos inofensivos e inócuos. Em outras palavras, eles ajudam a orientar o sistema imunológico para que suas reações sejam mais tolerogênicas.

"Nas sociedades ocidentais, na verdade, não somos mais expostos a bactérias mortais", segundo Leach. "Por isso, os problemas de saúde que estamos observando na população ocidental como um todo são mais relacionados à superativação das reações imunológicas."

Também se acredita que Bifidobacterium ajude a criar um ambiente intestinal mais hostil para as bactérias patogênicas, causadoras de doenças.

Ao contrário dos adultos, o intestino dos bebês é aeróbico, ou seja, ele contém oxigênio. Isso ocorre para sustentar o intestino, quando ele começar a absorver nutrientes pela primeira vez.

No nascimento, os intestinos também têm pH neutro. Eles não são ácidos, nem alcalinos.

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Nos dias que se seguem ao parto, muitas coisas acontecem pela primeira vez com os bebês. E talvez o mais importante seja o seu primeiro cocô.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"O problema é que os tipos de bactérias que, potencialmente, podem prejudicar os bebês recém-nascidos gostam dessas condições aeróbicas sob pH neutro", explica Leach.

"Bifidobacterium ajuda consumindo rapidamente o oxigênio e criando um ambiente anaeróbico que reduz o pH. Isso limita o crescimento de bactérias potencialmente nocivas."

Mas os cientistas estão apenas começando a entender como tudo isso se encaixa.

"Pode haver mais variações do que dizer que 'o parto de cesariana é pior e o parto normal é melhor'", segundo Field.

"Nem todos os bebês que nascem de parto normal conseguem os micro-organismos associados à redução dos riscos e nem todos os bebês nascidos de cesariana sofrem os problemas de saúde que nos preocupam."

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Engenharia de micro-organismos

Mas a descoberta levanta uma questão: devemos intervir para fornecer aos bebês (especialmente aos nascidos de cesariana) um reforço microbiano que possa ser útil para eles?

"As cesarianas salvam vidas", defende Archita Mishra. "Por isso, nosso trabalho é reconstruir o microbioma que está faltando, com segurança e precisão."

A questão é como fazer para que isso aconteça.

Uma opção que, às vezes, é considerada é a "semeadura vaginal". Um swab de fluido vaginal é esfregado na pele e na boca do recém-nascido, na esperança de que micróbios benéficos ingressem no corpo do bebê, indo até o intestino.

Esta prática vem ganhando popularidade, mas os especialistas alertam que ela pode transferir patógenos infecciosos perigosos.

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Acredita-se, por exemplo, que mais de 25% das mulheres sejam portadoras de estreptococos do grupo B na vagina. Eles podem ser fatais para o bebê.

Além disso, o estudo do bioma dos bebês de 2019 demonstrou que os micróbios benéficos não vêm da vagina da mãe.

Existem outras opções possíveis de manipulação do microbioma, como o transplante de micróbios fecais, também conhecido como transplante de fezes.

Neste processo, as fezes da mãe poderiam ser transferidas para o trato gastrointestinal do bebê. Foram realizados testes promissores em pequena escala, mas, atualmente, a prática não é recomendada.

"Ainda não sabemos se o microbioma vaginal ou mesmo fecal da mãe é o correto para fornecer ao bebê", explica Nigel Field. "E acho que existe o risco de que ele possa não fazer bem e até prejudicar o bebê de formas que ainda não compreendemos."

Por outro lado, já se demonstrou que os suplementos probióticos são uma forma segura e eficaz de influenciar a flora intestinal.

Testes clínicos indicam que eles podem proteger bebês extremamente prematuros ou com baixo peso ao nascer contra a enterocolite necrotizante, uma doença intestinal potencialmente fatal, que afeta principalmente os bebês prematuros. E outros estudos indicam que os suplementos podem reduzir o próprio risco de parto prematuro.

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Mas ainda existe a questão de saber quais bactérias devem ser fornecidas.

"Qualquer alteração no estabelecimento do microbioma de um bebê deve se concentrar na restauração ou retificação dos impactos da intervenção humana no processo", segundo Leach.

"A semeadura vaginal e os transplantes microbianos fecais são, basicamente, probióticos sujos. Você simplesmente não sabe o que há neles, o que causa riscos. Por isso, os probióticos provavelmente são a melhor saída."

Mishra concorda que os probióticos orais podem ser a técnica mais prática e segura. Mas ela destaca que os resultados apresentam grandes variações, já que o intestino de cada bebê é único.

Para ela, o futuro provavelmente está nas intervenções precisas no microbioma, orientadas pelo perfil imunológico, genético e alimentar do bebê.

"Pense na solução como 'medicina microbiana personalizada'", conclui a professora.

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Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.

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