O preocupante efeito do calor extremo sobre abortos espontâneos detectado em estudo inédito

Trabalhar no calor extremo pode duplicar o risco de bebês natimortos e aborto espontâneo para mulheres grávidas, de acordo com uma nova pesquisa realizada na Índia .

9 abr 2024 - 19h52
(atualizado em 11/4/2024 às 00h24)
Sumathy, que trabalha na colheita de pepino, perdeu um bebê com 12 semanas de gestação
Sumathy, que trabalha na colheita de pepino, perdeu um bebê com 12 semanas de gestação
Foto: BBC News Brasil

Trabalhar no calor extremo pode duplicar o risco de partos de bebês natimortos e aborto espontâneo para mulheres grávidas, de acordo com uma nova pesquisa realizada na Índia.

O estudo mostrou que os riscos para as futuras mães são significativamente maiores do que se pensava anteriormente.

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Os pesquisadores dizem que verões mais quentes podem afetar não só as mulheres em climas tropicais, mas também em países como o Reino Unido.

Eles pedem recomendações de saúde específicas para mulheres grávidas que trabalham em todo o mundo.

Oitocentas mulheres grávidas do Estado de Tamil Nadu, no sul da Índia, participaram no estudo, que foi iniciado em 2017 pela Faculdade de Saúde Pública do Instituto de Ensino Superior e Pesquisa Sri Ramachandra (SRIHER, na sigla em inglês) em Chennai.

Cerca de metade das participantes trabalhavam em empregos nos quais estavam expostas a níveis de calor elevados, como em atividades agrícolas, olarias e salinas.

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As outras trabalhavam em ambientes mais frescos, como escolas e hospitais — embora algumas também estivessem expostas a níveis bastante elevados de calor nesses empregos.

Não existe um valor universal para determinar a partir de que ponto o calor é prejudicial ao corpo humano.

"[O impacto do calor] é relativo ao que você está acostumado, ao que seu corpo está acostumado", diz Jane Hirst, uma das cientistas que contribuiu para o estudo.

Nos campos verdejantes de Tiruvannamalai, conheci Sumathy, uma das mulheres grávidas que participaram da pesquisa.

Ela tira as luvas grossas e alonga os dedos. Ela está colhendo pepinos há duas horas.

"Minhas mãos queimam com esse calor", ela me diz, acariciando suavemente as pontas dos dedos.

O verão ainda nem começou, mas já está fazendo cerca de 30°C aqui hoje — e a sensação de calor é maior devido à umidade.

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Sumathy tem que proteger as mãos dos constantes cortes dos minúsculos espinhos dos pepinos, mas as luvas a fazem suar muito.

"Meu rosto também queima", afirma.

Ela vai para a plantação de pepinos antes e depois de seu trabalho principal, como cozinheira em uma escola, e recebe cerca de 200 rúpias (pouco menos de R$ 12) por seus esforços.

Sumathy foi uma das primeiras a ser recrutada para o estudo.

Seu bebê também foi um dos primeiros a morrer.

"Eu costumava me sentir muito exausta por estar grávida e trabalhar no calor", relembra.

Um dia, enquanto deixava o almoço do marido, Sumathy começou a se sentir muito mal de repente. Naquela noite, ela consultou um médico que informou que ela havia sofrido um aborto espontâneo com 12 semanas de gestação.

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"Meu marido me deitava no colo dele e me consolava. Não sei o que teria feito sem ele", diz ela.

Sumathy fala do marido com muito amor, mas teve que aprender a viver sem ele. Ele morreu recentemente, e ela agora é a principal fonte de sustento da família.

Sumathy nunca vai saber ao certo se trabalhar no calor durante a gestação teve algo a ver com a perda do seu primeiro filho.

Mas, de uma maneira geral, o estudo mostrou que as mulheres que trabalhavam em condições semelhantes às dela tinham duas vezes mais chance de ter um bebê natimorto ou sofrer um aborto espontâneo do que aquelas que trabalhavam em ambientes mais frescos.

Importante para mulheres em todo o mundo

Rekha Shanmugam mede o calor diurno nos canaviais em Tiruvannamalai
Foto: BBC News Brasil

As mulheres grávidas que participaram do estudo na Índia estão realmente "na linha de frente das mudanças climáticas", afirma Hirst, que é obstetra no Reino Unido e professora sobre saúde global da mulher na organização de pesquisa médica The George Institute.

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A previsão é de que a temperatura média da Terra aumente quase 3ºC até ao fim do século em comparação com a era pré-industrial.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta para "uma ameaça existencial para todos nós", com as mulheres grávidas enfrentando "algumas das consequências mais graves".

Estudos anteriores mostraram um aumento de cerca de 15% no risco de parto prematuro e de natimortos durante ondas de calor — mas, em geral, estes estudos foram realizados em países de alta renda, como os EUA e a Austrália.

As últimas descobertas na Índia são particularmente preocupantes, de acordo com Hirst, e têm implicações mais amplas.

"O Reino Unido está tendo verões mais quentes e, embora não seja tão quente como a Índia, estes efeitos adversos [nas gestações] podem ser observados em temperaturas muito mais baixas em climas mais temperados, como o do Reino Unido".

Mas, segundo ela, é preciso colocar os resultados "em perspectiva".

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Mesmo com o dobro do risco no calor extremo, perder um bebê ainda vai ser um "evento raro para a maioria das mulheres".

Atualmente, não há uma recomendação internacional oficial para mulheres grávidas que trabalham no calor.

A principal orientação que existe para o trabalho em climas quentes é baseada em estudos envolvendo um homem que serviu nas Forças Armadas dos EUA nas décadas de 1960 e 1970, pesando entre 70 e 75 kg e com 20% de gordura corporal.

Hirst espera que este estudo, aliado a outras pesquisas, mudem este cenário.

Enquanto isso, Vidhya Venugopal, professora da Faculdade de Saúde Pública do SRIHER, que liderou a pesquisa na Índia, dá algumas dicas para as mulheres grávidas que trabalham no calor:

- Evitar períodos prolongados no calor;

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- Fazer pausas regulares à sombra se trabalhar ao ar livre em dias quentes;

- Evitar fazer exercícios ou tomar sol por longos períodos nos horários mais quentes do dia;

- Se manter hidratada com água.

Para este estudo, financiado pelo governo indiano, os pesquisadores usaram o índice que é conhecido como Temperatura Global do Bulbo Úmido (WBGT, na sigla em inglês), que mede os efeitos da temperatura, umidade, velocidade do vento e calor radiante no corpo humano.

As leituras do WBGT costumam ser mais baixas do que as temperaturas que você pode ver na previsão do tempo na TV ou em um aplicativo meteorológico.

O limiar de calor seguro para pessoas que realizam trabalhos pesados é de 27,5°C WBGT, de acordo com a Agência de Segurança e Saúde Ocupacional dos EUA.

'Não há escolha, a não ser trabalhar sob o Sol'

A previsão é de que a Índia se torne um dos primeiros países do mundo onde as temperaturas vão ultrapassar o limite seguro para pessoas saudáveis simplesmente descansarem à sombra, de acordo com um estudo recente da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

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O número de dias e noites (quando o corpo luta para se recuperar do calor diurno) quentes também deve dobrar ou até quadruplicar na Índia até 2050.

Nos canaviais de Tiruvannamalai, a ex-enfermeira Rekha Shanmugam, uma das pesquisadoras do estudo do SRIHER, está medindo o calor diurno.

Ao nosso redor, algumas dezenas de trabalhadores — cerca de metade mulheres — cortam cana com pequenos facões.

"Estas mulheres muitas vezes não têm outra escolha, a não ser trabalhar sob o Sol. Elas precisam do dinheiro", diz Shanmugam.

Ela coloca água em um medidor e aperta vários botões. Ele mostra uma temperatura WBGT de 29,5°C — acima do limite seguro para realizar este tipo de trabalho fisicamente exaustivo no calor.

"Se os trabalhadores permanecerem por períodos prolongados neste nível de calor, vão ficar mais propensos a doenças relacionadas ao calor, e isso é especialmente preocupante para as mulheres grávidas", adverte.

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Mulheres como Sandhiya são parte essencial da força de trabalho informal da Índia
Foto: BBC News Brasil

Sandhiya, de 28 anos, me disse que não tem escolha, a não ser fazer esse tipo de trabalho árduo — pelo qual recebe cerca de 600 rúpias, pouco menos de R$ 36 por dia.

Ela tem dois filhos pequenos e muitos parentes para alimentar.

Sandhiya também participou do estudo — e perdeu seu primeiro filho aos seis meses de gestação.

Ela teve que se ausentar do trabalho por vários meses para se recuperar e diz que ainda está pagando as dívidas que contraiu nesse período.

"Todos os meus desejos giram em torno dos meus filhos", afirma Sandhiya.

"Quero que eles estudem e consigam bons empregos. Eles não podem acabar trabalhando aqui no campo como eu."

O problema para fazer xixi

Os mecanismos que explicariam como e por que o calor afeta de forma preocupante as mulheres grávidas e seus bebês em desenvolvimento não são bem compreendidos.

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Um estudo anterior na Gâmbia mostrou que as altas temperaturas podem aumentar a frequência cardíaca do feto e diminuir o fluxo sanguíneo por meio do cordão umbilical.

Uma hipótese é que, quando a mãe fica com muito calor, o sangue pode ser desviado do feto, para ajudar a refrescá-la.

Shanmugam acredita que a falta de banheiros também pode ter um papel nisso.

Ela diz que um estudo anterior revelou que muitas mulheres não queriam se agachar em um campo aberto para fazer xixi — e, por isso, evitavam beber água, desenvolvendo assim problemas urinários.

"Elas se preocupam com insetos e cobras nos arbustos, ou com homens espiando", afirma.

"Muitas vezes, elas não se sentem seguras, então simplesmente seguram o dia todo, e só vão ao banheiro quando chegam em casa."

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Em busca de soluções

A Índia registrou grandes avanços no que se refere à saúde materna e dos bebês nos últimos anos, mas a taxa de natimortos ainda é de 12,2 para cada 1.000 nascimentos, segundo dados do Banco Mundial.

Para comparação, essa taxa é de 2,7 no Reino Unido e 7 no Brasil.

As conclusões do estudo realizado em Tamil Nadu estão sendo levadas muito a sério, afirma TS Selbavinayagam, diretor de saúde pública do Estado.

"Já oferecemos compensação financeira às mulheres grávidas, mas talvez a gente precise analisar também opções para oferecer empregos alternativos", diz ele.

O governo estadual oferece às mulheres mais pobres 18 mil rúpias (R$ 1.090) quando completam 12 semanas de gestação, para tentar aliviar algumas de suas pressões financeiras.

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No entanto, grande parte do poder de proteger estas trabalhadoras mal remuneradas está nas mãos dos empregadores.

Thillai Bhasker construiu telhados de aço para fornecer a sombra aos trabalhadores de sua olaria
Foto: BBC News Brasil

Nos arredores de Chennai, Thillai Bhasker, proprietário de uma olaria, ergueu gigantescos telhados de aço com revestimentos especiais de proteção térmica, para fornecer aos seus trabalhadores a tão necessária sombra.

Ele tem recebido conselhos de pesquisadores do SRIHER sobre como proteger melhor os trabalhadores.

"Os proprietários de empresas devem ser inteligentes o suficiente para saber como reter os funcionários", diz ele.

"Se você cuidar deles, eles vão cuidar de você."

Ele também nos disse que estava planejando construir banheiros exclusivos para mulheres.

Algumas organizações também oferecem sessões educativas sobre iniciativas simples que as mulheres podem tomar para se protegerem melhor no calor.

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Garrafas térmicas também estão sendo disponibilizadas para manter a água potável fresca.

Sumathy não teve escolha a não ser continuar trabalhando no calor extremo quando engravidou novamente, alguns anos após sofrer o aborto espontâneo.

Mas ela recebeu conselhos específicos de médicos e pesquisadores do SRIHER sobre como se proteger melhor. Sumathy deu à luz uma filha e um filho saudáveis.

Esta noite — após seu longo turno de trabalho —, ela vai voltar para casa, para eles.

Exausta, ansiosa, mas muito grata por estarem ali.

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