Cristiane Diniz, de 48 anos, relata suas dificuldades com a obesidade, destacando fatores como maternidade, predisposição genética, ambiente e estigmas sociais, e compartilha sua experiência positiva com tratamento médico e uso de medicação específica para emagrecimento.
"Eu nunca vou ser boa o suficiente para a minha mãe se eu não for magra. É como se eu precisasse ser magra para ser reconhecida pelos meus pais e aceita pela sociedade". É dessa maneira, com a voz embargada e os olhos cheios de lágrimas, que a produtora Anita*, de 36 anos, define a sua dor em meio à luta contra a pressão social e familiar para que alcançasse o dito ‘peso ideal’.
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Entre receitas milagrosas, remédios com e sem orientação médica, muitas dietas restritivas e até promessas para variados santos, a paulista já apelou para tudo. A primeira tentativa veio aos 12 anos, por recomendação da própria mãe. Um caminho que já dura 24 anos, regado a muita solidão, lágrimas, culpa, julgamentos, mas também de autoconhecimento e à compreensão de que a obesidade não é um estilo de vida e, sim, uma doença crônica que não se restringe ao ‘fechar a boca’.
No caso de Anita, a pressão pelo ‘corpo magro’ começou quando pequena. Ela não era gorda, longe disso. Sempre foi alta, com uma estrutura óssea firme, mas acabou comparada às amigas tanto pelo crivo social como pela família. Foram inúmeros comentários, como: "Ela é linda de rosto. Se ela emagrecer, os homens vão fazer fila atrás dela", "Olha o doce, menina. Quer engordar mais?", “Encolhe essa barriga", "Olha esse barrigão, aí"... e tantas outras frases gordofóbicas --corriqueiramente validadas socialmente-- que ainda ecoam em sua cabeça.
Como uma maneira de se defender, Anita passou a fazer piada e tentava mostrar que não se importava com as críticas. O pior de tudo: ela realmente acreditava que todos aqueles familiares tinham razão em ficar palpitando sobre o seu corpo. A situação se agravou com um transtorno alimentar --só diagnosticado recentemente. A produtora não consome frutas, verduras e legumes. Sim, de nenhum tipo. Uma vida taxada de fresca e de várias tentativas da mãe e da avó de fazer a então Anita criança comer enganada.
A pressão estética também acontecia no ballet. As medidas para as roupas da apresentação do final ano eram tiradas em julho. Com isso, era um semestre ouvindo que não podia comer porque iria engordar e não entraria no look do festival. A semana que antecedia a sessão de fotos era um martírio. "Já pensou se o meu titi não fechar? Meus Deus, que vergonha! Minha mãe me mataria", relembra ela.
Foram 10 anos vividos dessa maneira. Foi de cartilha de reeducação alimentar a dieta dos pontos até chegar em medicações mais pesadas. Tudo isso se sentindo inferior, fazendo de tudo para não chamar a atenção e tendo a certeza de que era fator de piada por não ser igual às amigas da época.
"Se pudesse, eu cavava um buraco e entrava dentro."
O tempo passou, Anita adquiriu mais consciência, mas ainda luta intensamente para reconstruir a autoestima. Em uma das tentativas recentes para emagrecer, ela optou por uma caneta injetável. Logo na primeira aplicação, passou muito mal e ligou, preocupada, para o médico. A resposta: "Se você está vomitando é sinal de que o seu corpo é bem sensível ao medicamento e que ele vai fazer efeito mais rápido."
Além dos discursos, as pessoas com obesidade são submetidas diariamente a situações de constrangimento. Você já parou para pensar no tamanho de uma catraca? E no tamanho de uma poltrona de avião? E no quanto cadeiras de plásticos podem suportar de peso? Isso sem falar no desconforto das cadeiras de praia.
"Recentemente, fiz uma viagem internacional que durou mais de 12 horas. Cheguei ao destino final com a lateral das pernas completamente roxas, com vários hematomas provocados pela poltrona do avião."
Todos os processos foram dolorosos e, igualmente, traumáticos. Mas Anita não tem dúvidas em dizer que o mais difícil é autoaceitação em meio a tantos estigmas. Há cerca de um ano e meio, ela buscou a ajuda de acompanhamento nutricional especializado em transtornos alimentares. A consciência está maior, mas a culpa ainda está lá, assim como a dificuldade de enxergar que o corpo, seja ele gordo ou magro, não a define. Ela ainda é uma alma machucada pelos rótulos carregadas de uma vida inteira.
Estigmas que afetam tratamento
É comum, infelizmente, que as pessoas com obesidade caiam no discurso de que são culpadas e que “não se esforçam o suficiente” para mudar a situação. Qual paciente de outra doença também é apontado como autor e não como vítima? É o que pontua Simone Matsuda, endocrinologista e membro da Sociedade Brasileira de Diabetes.
"Quando a gente fala de obesidade, a gente não está falando apenas da doença obesidade. A gente está falando de histórias, histórias das dores de uma jornada que é solitária, de muitas expectativas e frustrações", relata ela, que descreve a obesidade como uma doença multifatorial e complexa.
Para Fabiana Cylrunik, diretora médica de obesidade da Eli Lilly do Brasil, associar a obesidade à preguiça é 'cientificamente injusto e equivocado'. "É uma doença com causas multifatoriais, que tem uma base genética muito estabelecida. Entre 60 e 70% dos pacientes com obesidade têm genes relacionados a um acúmulo de gordura corporal. Há ainda uma complexidade metabólica, que atrapalha a manutenção da perda de peso, assim como há muitas outras doenças associadas, como a diabetes."
O médico Marcio Mancini, chefe do Grupo de Obesidade da Disciplina de Endocrinologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, acrescenta que a obesidade não é uma escolha de vida. E, segundo ele, força de vontade, sozinha, não é suficiente, e o acompanhamento médico é essencial, assim como em qualquer outra doença crônica.
Quando você perde peso, a sua fome aumenta e o seu metabolismo cai. "É como se o seu corpo estivesse entendendo que essa perda de peso fosse uma agressão. Então, embora a gente tenha evoluído, o nosso cérebro ainda tem essa primitividade de proteção em relação à desnutrição. Então é por isso que é tão difícil a gente manter peso perdido ou perder o peso", explica Fabiana, que aponta o estigma social como barreira para tratar a obesidade, que já acomete um terço da população brasileira.
"Basta ver como os próprios desenhos tratam as pessoas com obesidade. Não há princesas da Disney com obesidade. As pessoas com obesidade são sempre as malvadas, como a Úrsula da Pequena Sereia", pontua a diretora médica da Lilly ao mostrar como esses estigmas são construídos desde a infância.
"A gente não pode ter essa visão simplista de relacionar especificamente a obesidade a alguma doença moral, como um comportamento. A gente tem que desvencilhar esse conteúdo para que os nossos pacientes possam efetivamente receber tratamento adequado", completa Fabiana.
Mas os estigmas também passam pelos próprios profissionais de saúde, que nem sempre entendem o que é obesidade, como acrescenta Luis Fernando Meyer, diretor do Instituto Cordial. "A pessoa com obesidade, quando vai para o sistema de saúde, é estigmatizada, o que a afasta do tratamento. Têm várias pesquisas que já mostram isso", afirma ele, que também critica a forma como o próprio governo trata a questão.
"A principal porta-voz é a Coordenadoria Geral de Alimentação e Nutrição, como se fosse puramente uma questão de alimentação, e não é. A obesidade é também uma questão de alimentação, principalmente de acesso à alimentação saudável, mas ela é uma questão de saúde. Uma questão que precisa ser tratada na saúde básica, na saúde especializada e também em outros ministérios, como o de esporte e desenvolvimento urbano."
Impactos do ambiente
Outro fator importante, segundo Mancini, é o ambiente. Pessoas com longas jornadas de trabalho, por exemplo, acabam tendo menos tempo para exercitar-se. Da mesma forma, indivíduos de classes sociais mais baixas tendem a optar por alimentos que saciam, mas não nutrem adequadamente, como os ultraprocessados.
“É muito simplista chegar para uma pessoa com obesidade, que sai de casa às vezes às 5 horas da manhã, chega tarde da noite, e dizer que ela precisa se exercitar e comer direito. Até porque, um pacote de macarrão instantâneo custa R$ 1, enquanto 1 kg de banana custa R$ 15”, explicou.
Mancini destaca ainda que o aumento da obesidade entre populações de menor renda está diretamente relacionado ao consumo de alimentos ultraprocessados, mas não se limita apenas à alimentação. Segundo ele, toda a estrutura social contribui para o sedentarismo, desde impostos mais baixos sobre produtos industrializados até a falta de segurança pública, que impede muitas pessoas de caminhar nas ruas.
"O ambiente está se tornando cada vez mais favorável ao crescimento da obesidade", afirma o especialista.
* Anita é o codinome para a personagem, que preferiu não se identificar.