'Marés de tempestade' e 'repique do rio': entenda porque o escoamento de água piorou em Porto Alegre

Especialistas dizem que geografia da Região Metropolitana e gestão do solo facilitam inundações como a provocada pelos temporais de 2024

8 mai 2024 - 16h13
Enchente na Avenida Praia de Belas, em Porto Alegre (RS), na terça-feira, 07 de maio de 2024
Enchente na Avenida Praia de Belas, em Porto Alegre (RS), na terça-feira, 07 de maio de 2024
Foto: Donaldo Hadlich/Código 19 / Estadão

Localizada em uma região geográfica que parece uma "boca de funil" e marcada por ações humanas que vêm facilitando enchentes, Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, se tornou uma cidade que dificulta o escoamento de água. Especialistas ouvidos pelo Terra nesta quarta-feira, 8, afirmam que medidas de prevenção e redução das inundações serão urgentes para quando a capital gaúcha e sua Região Metropolitana estiverem recuperadas dos temporais, o que ainda pode levar meses.

Para o coordenador-geral do Atlas Ambiental de Porto Alegre e professor titular do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rualdo Menegat, a situação vivida por Porto Alegre é o maior colapso de uma região metropolitana com elementos climáticos da história da América do Sul. A intensidade das chuvas que começaram no final de abril deste ano já seria motivo para preocupação. "Mas Porto Alegre ainda se situa num lugar muito sensível, muito peculiar. De um lado, há a interface com todo o sistema continental, o Planalto. E de outro lado, mais a leste, está a região costeira, plana, onde se encontra ali um complexo de lagoas e lagunas que se abrem para o mar", diz.

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"Quando as chuvas são intensas, elas são recolhidas por cinco rios importantes, Jacuí, Tapari, Caí, Sinos e Gravataí. E todos eles convergem em Porto Alegre, que é uma zona baixa. A água chega a Porto Alegre como se na boca de um funil que recebe todos esses rios, convergindo para cá. Esse grande lago de inundação atinge fortemente as cidades da região metropolitana de Porto Alegre", explica Rualdo.

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Aliada a este cenário de "funil" e à quantidade grande de água, um outro fenômeno, chamado de "marés de tempestades" provoca até 2 metros de elevação no mar e também atrapalha o escoamento. Causadas por conta da pressão de ondas e do vento, as marés de tempestade fazem o mar ficar mais alto do que o nível de escoamento da Lagoa dos Patos e impede que o excesso de água vá parar no oceano.

Monoculturas e urbanização

Para Rualdo, o solo da Região Metropolitana também é um fator para se considerar. Usos inteligentes do solo colaboram para que a água escoa com uma velocidades adequada e se infiltre bastante. No caso de Porto Alegre, Rualdo aponta duas questões que impedem a infiltração ideal: a urbanização e as monoculturas, que alteraram a paisagem da região, em especial nos últimos 20 anos.

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"Políticas públicas incentivaram isso: com a desestruturação do Código Forestal do Rio Grande do Sul, que aconteceu no ano passado, mais de 500 itens foram modificados, (...) Tudo isso vai produzindo uma situação crítica. Quando tu estimulas uma monocultura intensiva, como por exemplo a de soja, em que até a última árvore perto do rio é abatida, a água escoa muito mais rápido, em volumes muito maiores. Com isso, ela carrega uma quantidade enorme de argila no solo e faz com que a água ganhe velocidade, volume, o que vira uma torrente capaz de arrastar tudo o que vem pela frente", continua o professor.

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Sobre a urbanização da capital gaúcha, Rualdo afirma que "vivemos nessas cidades (super urbanas) como se estivéssemos dentro de armadilhas. Nós temos que ter cuidado com os nossos rios e temos que ter um sistema de urbanização integrado com a funcionalidade dos rios. Ter uma certa preservação, conservação, porque isso tudo ajuda a mitigar esses efeitos mais imponentes da natureza. Neste caso, nós temos uma cidade quase como uma nave, independente de tudo que está ao nosso redor. O urbanismo tem que ser um entrelaçamento com os corredores ecológicos que aí estão".

Próximos dias

O engenheiro hidrológo e gerente de Hidrologia e Gestão Territorial do Serviço Geológico do Brasil, Franco Turco Buffon, as previsões de novas chuvas para os próximos dias podem preocupar. "Se a chuva cair nas nascentes e nas bacias hidrográficas dos rios afluentes (curso d'água que deságua em um rio principal ou em um lago) e caso a chuva aconteça muito forte, esses rios afluentes vão voltar a subir. Até o momento, o prognóstico de chuvas para esses afluentes não era muito perigoso, mas exige alerta das defesas civis. Essas chuvas vão acontecer nessas bacias hidrográficas e vão levantar os níveis dos rios. E isso vai chegar de novo aqui em Porto Alegre", diz.

Segundo Buffon, é possível que, a partir da chuva nos afluentes, aconteça um fenômeno chamado de "repique do rio". "É quando o rio já está baixando, mas volta a subir por mais alguns centímetros ou metros, dependendo da ocasião. Não deve atingir o nível que estamos agora, mas é suficiente para eventualmente fazer com que o rio volte a subir um pouco e retarde esse processo de escoamento das águas, dificultando ainda mais e prolongado mais o tempo da imundação na cidade", conclui.

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O engenheiro hidrólogo entende que, apesar da característica natural de demora no escoamento dos rios gaúchos, existem medidas que podem ser tomadas para a prevenção e a redução dos impactos das inundações.

"Existem medidas que a gente chama de estruturais, que a maioria dos municípios já tomam, que seria a construção de diques, de comportas para proteger a cidade, construção das casas de bombas para manter as cidades secas. Eventualmente, alguma ação dentro da calha do rio que promova a aceleração do escoamento também", segue Buffon.

"Existe um outro conjunto de medidas, não-estruturais, que seria mais relativo ao monitoramento dos recursos hídricos e preparação de sistemas de alerta hidrológico e meteorológico, para que as defesas civis possam fazer a proteção da população. É possível conhecer, mapear essas áreas e, dentro de um plano diretor de ocupação do solo, destinar áreas que são áreas de risco à inundação para usos coletivos, como praças. (...) São áreas que a gente reserva dentro da cidade para não serem ocupadas com residências e empresas, áreas que ficariam destinadas a receberem as águas quando acontecerem esses grandes eventos", conclui

Previsão do tempo

O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu quatro alertas sobre as chuvas no Rio Grande do Sul, e ressaltou “grande perigo” para tempestades nas partes sudoeste e sudeste do estado gaúcho.

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As chuvas se concentram na parte sul do estado nesta quarta-feira, 8. Do sul ao centro do Rio Grande do sul, há alerta de “perigo” do Inmet para tempestades e até granizo, de forma isolada. No sudeste do estado, o acumulado de chuvas já passa dos 100 milímetros, próximo a Pelotas. Nas praias, há também um aumento do nível das águas.

Na capital, Porto Alegre, no noroeste, nordeste e centro oriental do RS, o alerta é de “perigo potencial”, com previsão de até 50 mm/dia de chuva e ventos que podem chegar a 60 km/h se confirmou e as buscas pelos desaparecidos e isolados por causa das enchentes tiveram que ser interrompidas.

Fonte: Redação Terra
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