Mesmo com a proibição do Ibama e penalidades previstas, o 'Óleo da Bôta', ligado à caça ilegal de botos, segue sendo comercializado no mercado Ver-o-Peso em Belém, muitas vezes de forma aberta, e a fiscalização é considerada insuficiente para coibir completamente a prática.
Mesmo com a proibição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e com multas que podem chegar a R$ 5.000, o comércio do chamado Óleo da Bôta continua ativo e, muitas vezes, à mostra nas bancas do Mercado Ver-o-Peso, um dos principais cartões-postais de Belém (PA), município que sedia a 30ª Conferência do Clima da ONU (COP30).
Receba as principais notícias direto no WhatsApp! Inscreva-se no canal do Terra
A equipe do Terra percorreu o local, reconhecido como a maior feira a céu aberto da América Latina, e identificou mais de 15 barracas exibindo frascos do produto de forma aberta, oferecendo-o a visitantes e turistas por cerca de R$ 10, apesar de a venda ser proibida no Brasil por estar associada à caça e à matança ilegal de botos na Amazônia. Não é possível determinar se o produto exposto é realmente proveniente do animal ou se se trata de versões falsificadas, mas, em qualquer caso, sua comercialização é ilícita.
O boto-cor-de-rosa (Inia geoffrensis), chamado de boto-da-Amazônia ou boto-vermelho, é o maior golfinho de água doce do mundo e um dos símbolos da biodiversidade amazônica. Na avaliação mais recente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), publicada em 2023, a espécie foi classificada como Em Perigo (EN) de extinção.
Há na região amazônica do Pará ainda o boto-cinza (Sotalia guianensis), espécie de mamífero aquático também ameaçada de extinção nacional e internacionalmente, de acordo com o ICMBio.
Venda aberta ao público
Durante a apuração, vendedores ofereciam o produto sem qualquer tentativa de esconder sua comercialização. Os frascos ficavam expostos, com explicações sobre efeitos afrodisíacos. "Ele é afrodisíaco, serve pra atrair o macho, porque a boto atrai o macho", afirmou uma vendedora, que tentou minimizar a prática, alegando que não há caça direta aos animais. “Os pescadores não matam os botos. Quando o boto vem na rede e morre, eles aproveitam e tiram o óleo”, disse.
Outra vendedora, no entanto, apresentou uma versão diferente e admitiu a existência da matança quando se trata do óleo que realmente provém da espécie. “Quem caça, mata o boto pra tirar o órgão sexual do macho e da fêmea, e desses órgãos é que fazem o óleo”, afirmou. Ela também reconheceu que há produtos falsificados, preparados com óleo de cozinha e vendidos como se fossem o verdadeiro óleo extraído do boto, mas disse que ainda existe a comercialização ilegal do óleo proveniente do animal.
A comerciante, que preferiu não ser identificada, afirmou que as fiscalizações são comuns, mas não com intensidade suficiente para encerrar o comércio. “Tudo de animal é proibido, morto ou vivo. Aqui, eles vendem escondido que nem droga, mas o Ibama fiscaliza porque os botos estão desaparecendo. Quando pegam, é multa na hora. Normalmente, eles vêm fiscalizar pelo menos de três em três meses, mas acho que deveria ser até mais frequente”, relatou.
Ela lembrou que, antes da atuação dos órgãos ambientais, a venda era ainda mais explícita. “Antigamente, antes da proibição, os restos dos bichos ficavam pendurados nas barracas: o couro, a queixada, até a genitália do boto. Tinha cabeça de preguiça, couro de onça, dente de veado. O Ibama começou a atuar e essa exposição acabou”, contou.
Apesar disso, ela afirmou que mesmo com as fiscalizações periódicas, o “óleo” segue sendo vendido e exibido. “Se quem caça traz e você compra, tá sendo conivente. É como ser receptador. Falta muita conscientização dos vendedores”, disse ela.
Além das bancas do Ver-o-Peso, o Terra identificou anúncios em plataformas de venda online oferecendo o suposto “óleo legítimo” pelo preço de R$ 25 a R$ 40. Nas publicações, vendedores afirmavam que o produto seria autêntico, embora não houvesse qualquer forma de comprovar a veracidade das ofertas.
Infusão com partes da 'bôta'
A bióloga e pesquisadora colaboradora do Museu Paraense Emílio Goeldi, Renata Emim, explicou que quando o produto é legítimo, o óleo é obtido a partir de uma infusão feita com partes do animal. “O óleo é preparado a partir da infusão de partes do boto, geralmente da genitália feminina”, afirmou.
Renata diz que o abate intencional não é a regra e partes do corpo dos animais são frequentemente retiradas de carcaças encontradas na região. “As partes comercializadas são oriundas, muito provavelmente, dos botos que acidentalmente morrem em redes de pesca. Porém, é comum encontrarmos carcaças frescas de botos nas praias que tiveram partes da genitália e do rosto retiradas para uso no comércio”, disse.
“Geralmente, retiram-se [das cascatas] os dentes, usados em artesanatos, como pulseiras, pingentes e colares, ou em rituais religiosos. O olho é usado como patuá e as genitálias, tanto masculina quanto feminina, como amuletos do amor”, afirmou.
Em algumas regiões do país, testes genéticos já identificaram produtos falsificados sendo vendidos como partes de boto. “No Rio de Janeiro, foi comprovado por testes moleculares que os produtos são falsos e feitos a partir de porcos ou ovelhas. Porém, no Pará e no Maranhão, são usados, de fato, tecidos do boto-cinza”, disse Renata, que destaca que não há qualquer base científica que comprove supostos efeitos afrodisíacos do óleo ou das partes do animal. “Não há nada comprovado.”
“Como todo comércio que utiliza partes de animais silvestres, é proibido e deve ser desestimulado. A aplicação da lei é clara nesses casos”, acrescentou a especialista.
Ibama: produto tende a ser falso, e comércio é ilegal
Ao Terra, o Ibama informou que a comercialização do produto conhecido como 'Óleo da Bôta' é proibida. Pela legislação brasileira, partes e produtos de animais silvestres só podem ser vendidos com autorização dos órgãos ambientais, e apenas quando provenientes de criadouros legalizados, o que não ocorre no caso desse material.
O órgão explicou que a responsabilidade pela fiscalização é compartilhada entre entidades federais, estaduais e municipais, e que o Ver-o-Peso, por ser um dos pontos turísticos mais conhecidos de Belém, é alvo de fiscalização constante tanto do Ibama quanto da Polícia Ambiental.
Apesar disso, o instituto afirmou não ter conhecimento de ampla oferta atual do produto e diz desconfiar que a maior parte ou até a totalidade dos frascos vendidos como 'Óleo da Bôta' sejam falsos.
"O Ibama não tem conhecimento e desconfia que a origem desses produtos não seja, de fato, proveniente da biodiversidade brasileira, como a de botos ou outros animais, tendo em vista a frequência das fiscalizações realizadas pelas Polícias Militar e Civil no local. Entende-se, portanto, que a maior parte, senão a totalidade, dos produtos comercializados sob a denominação de “óleo de boto” recebe essa designação apenas para enganar consumidores incautos ou desavisados", afirmou o órgão.
Com relação às penalidades previstas para quem captura, mata ou comercializa produtos derivados de botos, a legislação prevê detenção de seis meses a um ano, além de multas que podem chegar a R$ 5 mil por espécime ou parte comercializada quando se trata de animais ameaçados de extinção ou incluídos na Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Fauna e Flora Selvagens (Cites).
O Ibama também destacou que práticas que envolvem a fauna por motivos místicos ou tradicionais aumentam a pressão de caça, dificultam a recuperação das espécies e prejudicam todo o ecossistema. A eliminação do boto, um animal de topo de cadeia, compromete o equilíbrio ambiental e afeta outras populações aquáticas.
O órgão também reforçou a importância de não consumir nenhum tipo de produto derivado de animais silvestres sem licença. "O consumo de qualquer parte de animais silvestres sem licença incentiva o tráfico e a captura ilegal. Deve-se evitar, a qualquer custo, remunerar vendedores de animais ou partes ilegais, pois isso estimula novas tentativas de venda, resultando em novas capturas e, consequentemente, na morte de mais animais", destacou à reportagem.
*A repórter viajou a convite da Motiva, idealizadora da Coalizão pela Descarbonização dos Transportes.