As imagens são sempre perturbadoras: barcos precários repletos de pessoas exaustas, há dias sem água ou alimentos, tentando se aproximar das costas de países desenvolvidos. No Mediterrâneo, as agências da ONU para migrantes e refugiados (OIM e ACNUR) registraram em 2023 mais de 200 mil travessias partindo de países como Argélia, Líbia e Tunísia rumo à Europa. Resultado de mais de 3.155 mortes ou desaparecimentos.
Mas este não é um fenômeno exclusivamente europeu. Trata-se de uma dinâmica global de controle migratório que encontra no caso australiano seu paradigma mais desenvolvido.
Em nossa pesquisa no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, investigamos como Estados transformam as zonas de busca e salvamento marítimo — espaços internacionais concebidos para proteger vidas — em instrumentos de controle de fronteiras e exclusão de migrantes.
O argumento central é direto. A legalização dos espaços marítimos não resultou em maior proteção aos direitos humanos. Mas habilitou um "jogo soberano" em que Estados manipulam limites jurisdicionais, exploram ambiguidades normativas e evitam responsabilidades. De forma frequente, abandonam pessoas vulneráveis no mar.
O incidente que inaugurou uma política
Em agosto de 2001, o navio norueguês MV Tampa respondeu a um pedido das autoridades australianas para verificar uma embarcação indonésia em perigo que transportava 433 refugiados afegãos. Após resgatá-los a 75 milhas náuticas da Ilha Christmas (território australiano), o capitão Arne Rinnan tentou seguir para a Indonésia.
Pressionado pelos refugiados, cujas condições de saúde eram precárias, ele mudou de curso e solicitou entrada nas águas australianas. A resposta foi imediata. Permissão negada. Forças armadas australianas interceptaram e assumiram o controle do navio quando resolveu prosseguir.
Este episódio precipitou a chamada "Solução do Pacífico" — uma política que transformaria radicalmente o tratamento de migrantes marítimos. Sua inovação central foi uma manobra jurídico-político-espacial: a exclusão de determinadas ilhas australianas da "zona migratória" legal do país.
Na prática, isso significava que pessoas que chegassem a esses territórios sem visto não seriam consideradas legalmente como tendo "chegado" à Austrália. Criou-se assim o que o filósofo Hans Lindahl denomina um espaço de "a-legalidade" — um limbo jurídico no mar, onde os direitos dos refugiados ficam suspensos.
Fronteiras móveis e mensagens de tolerância zero
Em 2013, a política australiana ganhou nova configuração com a "Operation Sovereign Borders" — uma abordagem militarizada e interinstitucional que o pesquisador Nick Vaughan-Williams, da Universidade de Warwick), descreveu como a materialização da "fronteira em todos os lugares". Um conjunto disperso, móvel e desterritorializado de mecanismos de controle.
As forças navais passaram a interceptar e rebocar embarcações de volta às águas indonésias. Uma política de sigilo foi implementada para evitar escrutínio público. Campanhas de comunicação reforçavam posições de tolerância zero.
Em 2014, imagens da ABC News mostraram uma embarcação militar australiana rebocando um pequeno bote salva-vidas por três horas até águas indonésias. Os refugiados a bordo foram forçados a pular em correntes perigosas e nadar quase trinta metros até a costa próxima à vila de Kebumen.
Segundo o Refugee Council of Australia, entre 2013 e fevereiro de 2024, as operações resultaram em 47 embarcações interceptadas com 1.121 pessoas devolvidas à força, e 112 embarcações com 3.651 indivíduos impedidos de partir em cooperação com Estados estrangeiros.
As mensagens oficiais eram explícitas. Em vídeos elaborados pela operação, declarava-se: "As fronteiras australianas estão fechadas". "Não arrisque". "A Austrália está de olho em cada embarcação". "Chance zero para imigração ilegal".
A Anistia Internacional considerou que a data de lançamento da política entraria para a história como "o dia em que a Austrália decidiu dar as costas aos mais vulneráveis do planeta."
O que são as zonas SAR e por que importam
Para compreender como essas práticas operam, é necessário entender a arquitetura jurídica dos oceanos. As zonas SAR (Search and Rescue, ou Busca e Salvamento) são regiões marítimas estabelecidas por convenções internacionais — especificamente a Convenção SOLAS e a Convenção SAR (1979).
Por elas, os Estados costeiros assumem responsabilidade primária por responder a chamados de emergência e resgatar pessoas em perigo no mar. Não são territórios nacionais. São espaços de cooperação internacional humanitária.
A obrigação de prestar assistência a pessoas em perigo no mar é um dos princípios mais antigos do direito internacional marítimo. Sob a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS), todo Estado deve exigir que os comandantes de navios sob sua bandeira prestem socorro a qualquer pessoa em perigo de se perder no mar. A Convenção SOLAS estabelece que pessoas resgatadas devem ser desembarcadas em um "local seguro" — tipicamente o porto mais próximo.
O problema reside precisamente nas ambiguidades. Quem define o que é um "local seguro"? O que acontece quando o porto mais próximo é justamente o país de destino que o migrante buscava alcançar? E, crucialmente, o que ocorre quando um Estado deliberadamente patrulha os limites de sua zona SAR para interceptar embarcações antes que estas possam apresentar pedidos de asilo em território nacional?
O jogo soberano nos mares internacionais
Nossa análise revela que as zonas SAR se tornaram arenas de um "jogo soberano" em que Estados exploram criativamente as brechas do sistema internacional. A Austrália exemplifica esta dinâmica. Ao patrulhar estrategicamente a fronteira entre sua zona SAR e a da Indonésia, intercepta embarcações e as redireciona para portos indonésios — tecnicamente cumprindo a obrigação de "resgate", mas efetivamente executando controle migratório extraterritorial.
A política de não divulgar os locais exatos de interceptação cria obstáculos deliberados para que especialistas avaliem a conformidade com o direito internacional.
Esta ambiguidade calculada, combinada com decisões complexas sobre quando declarar uma situação de perigo, transforma a interdição de embarcações de migrantes em uma forma de ação política estratégica juridicamente sancionada.
O resultado é o que chamamos de "geografias carcerárias offshore" — uma abordagem que transforma espaços marítimos internacionais em zonas de contenção e exclusão. A soberania deixa de estar confinada às fronteiras territoriais nacionais e passa a ser continuamente rearticulada em regimes espaciais móveis, fragmentados e juridicamente estruturados. Nestas condições, a proteção de vidas humanas torna-se contingente à discricionariedade soberana dos Estados, não a direitos universais.
Um modelo que se globaliza
A experiência australiana não permaneceu isolada. Ela forneceu o modelo conceitual e operacional para arranjos similares no Mediterrâneo — como as operações conjuntas da Frontex e os acordos bilaterais entre Itália e Líbia — e para a política britânica de "stop the boats" no Canal da Mancha.
Em todos estes casos, observa-se o mesmo padrão. A cooptação de (infra)estruturas internacionais humanitárias para legitimar regimes fronteiriços excludentes sob a aparência de resgate e proteção.
Esta tendência global de externalização do controle migratório revela uma arquitetura em evolução que dissolve as distinções entre proteção internacional humanitária e segurança nacional.
Estados projetam seu poder de controle migratório muito além de suas fronteiras geográficas, transformando o mar em uma zona difusa de governança onde os direitos dos migrantes ficam permanentemente suspensos.
O mar como espaço de poder, direito e vida
O viés telúrico do direito internacional — a pressuposição de que a ordem política tem sua sede no território (terrestre) continental — obscurece a importância do mar como espaço de exercício de poder soberano.
Esta invisibilidade política permite que Estados "joguem" seu jogo internacional soberano enquanto contornam responsabilização. O mar, longe de ser um espaço anômico ou sem lei, tornou-se um campo político internacional legalizado, onde Estados navegam estrategicamente por águas juridicamente constituídas, politizando práticas de fronteirização e tomando decisões soberanas excepcionais — inclusive sobre quem vive e quem morre.
Enfrentar estes desafios exige repensar a soberania marítima internacional e a proteção de direitos humanos para além das (infra)estruturas baseadas em terra. Exige também reconhecer que marcos legais e infraestruturas internacionais, em vez de oferecer proteção, podem ser instrumentalizados como ferramentas legitimadoras de práticas de fronteirização, controle migratório e exceções letais.
A promessa de direitos humanos universais permanece não cumprida enquanto os mares internacionais continuarem sendo um teatro de discriminação, injustiça e abandono.
A pergunta que fica para o Brasil — país com extensa costa atlântica e compromissos históricos com a proteção de refugiados — é: como evitar que a lógica do "jogo soberano" australiano se reproduza em nossa região? Como garantir que as zonas de busca e salvamento no Atlântico Sul permaneçam espaços de proteção da vida, não de sua negação?
(*): O texto completo está disponível na Carta Internacional, v. 20, n. 2 (2025), sob o DOI: 10.21530/ci.v20n2.2025.1545, intitulado Playing with Maritime Lines and Migrant Lives: SARs and Australian Extraterritorial Bordering Practices at Sea.
Roberto Vilchez Yamato recebe financiamento da FAPERJ e do CNPq. Para os estudos que embasam este artigo, recebeu apoio através do Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (JCNE), processo nº E-26/201.240/2022, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), através do Programa de Produtividade em Pesquisa (PQ), processo nº 306573/2023-7.
Francisco Eduardo L. de Matos agradece o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) através do Programa de Pós-Doutorado Nota 10 (Processo nº E-26/205.758/2022). Sem esse financiamento, a pesquisa que embasa este artigo não teria sido possível.