Linhas estaduais, disputas nacionais: o redesenho dos distritos e o futuro das eleições nos EUA

Nos EUA, o redesenho distrital expõe a força estados e revela sua influência sobre o equilíbrio de poder no Congresso americano

8 dez 2025 - 14h33

No último dia 4 de novembro os cidadãos do estado da Califórnia foram convocados a votar em uma eleição especial. Ela ganhou esse nome pois ocorre no meio da década - algo incomum - e por causa da proposta em discussão. Nesse dia, os eleitores tiveram que votar se aprovavam ou não a Proposta 50, que autoriza o redesenho dos distritos eleitorais do estado na Câmara dos Deputados americana.

O referendo aconteceu oficialmente no dia 4 de novembro - antes disso as pessoas poderiam enviar seus votos pelos correios - e, ainda que a previsão da publicação do resultado oficial seja apenas para o começo de dezembro, contagens preliminares das urnas e estimativas indicam que a proposta foi aprovada por pelo menos 60% dos votos válidos.

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Embora a Califórnia tenha sido historicamente um exemplo de uso de comissões independentes para o redesenho dos distritos, a nova proposta rompe temporariamente esse modelo. O objetivo declarado é que se trata de uma resposta ao redesenho já aprovado no Texas, que favorece os republicanos nos próximos pleitos legislativos federais.

Para entender a importância dessa eleição especial, é preciso voltar alguns passos para compreender o papel dos estados nas instituições eleitorais, o fenômeno conhecido como gerrymandering e as consequências disso para as eleições legislativas do ano que vem.

O que está em jogo no redesenho dos distritos

Nos Estados Unidos, o poder eleitoral é amplamente descentralizado, e cabe aos estados definir boa parte das regras que regem o processo. Além de administrarem as próprias eleições, os estados determinam critérios como prazos para registro de eleitores, requisitos de residência, formas de identificação exigidas no momento do voto, e o modo como são conduzidas as votações antecipadas e por correio.

Essa autonomia faz com que o sistema eleitoral varie significativamente de um estado para outro, refletindo diferenças políticas, demográficas e institucionais. No caso das eleições legislativas federais, essa autonomia também se estende ao desenho dos distritos eleitorais, instrumento pelo qual os estados moldam, na prática, a forma de representação no Congresso.

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Diferente do modelo que conhecemos no Brasil, onde cada estado representa um distrito no qual os deputados devem disputar as vagas em aberto, nos EUA cada estado é dividido em diversos distritos. Esses distritos são desenhados pelas legislaturas estaduais - em alguns casos, por uma comissão independente - e de acordo com a Constituição americana, o redesenho deve ocorrer a cada dez anos após a divulgação do Censo populacional, uma vez que é ele quem determina a distribuição proporcional das 435 cadeiras da Câmara.

Entretanto, o que deveria ser um mecanismo para garantir representatividade proporcional acabou se tornando um instrumento de manipulação eleitoral nos Estados Unidos. O termo gerrymandering foi criado em 1812, quando o então governador de Massachusetts, Elbridge Gerry, aprovou um mapa eleitoral que favorecia seu partido ao criar distritos com formatos peculiares — um deles lembrava a forma de uma salamandra.

Desde então, o termo passou a designar a manipulação deliberada do desenho distrital para beneficiar determinados grupos, especialmente os partidos políticos. Na prática, o redesenho significa incluir em um mesmo distrito em que a maioria dos eleitores votam por um partido, possíveis eleitores do partido adversário, de modo a enfraquecê-lo.

Republicanos e democratas de olho nas eleições de 2026

A despeito das diversas críticas ao uso do gerrymandering, principalmente pela possibilidade de distorção dos resultados legislativos e de impacto negativo sobre o desenvolvimento de políticas públicas, ele continua sendo um artifício usado tanto pelos republicanos quanto pelos democratas.

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O caso mais recente teve início em meados de Julho deste ano, quando o presidente Donald Trump instruiu os republicanos do Texas a redesenhar seus distritos para garantir mais assentos ao partido no ano que vem.

A preocupação do presidente se dá porque, atualmente, a diferença no número de deputados de cada partido é pequena, e o partido do presidente possui apenas seis parlamentares a mais do que os democratas. Dado o histórico de perdas nas eleições ocorridas no meio do mandato, Trump estaria tentando se adiantar, reduzindo a possibilidade de se ver em desvantagem após o pleito de 2026.

Mesmo com o protesto dos democratas texanos, que chegaram a abandonar o Legislativo na tentativa de bloquear a passagem do projeto, em agosto o Congresso do Texas aprovou o novo desenho dos distritos, com o objetivo de ganhar pelo menos mais cinco assentos na Câmara no ano que vem para os republicanos, sem prejudicar os vinte e cinco que eles já possuem.

Em setembro, o estado do Missouri, também reduto do partido do presidente, conseguiu a aprovação do seu redesenho distrital, calculando pelo menos mais um assento para o estado.

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Do lado dos democratas, a resposta do estado com o maior número de deputados na Câmara dos Deputados veio rapidamente: um dia após a aprovação no Texas, os parlamentares da Califórnia começaram a discutir suas propostas de redesenho. Entretanto, diferente dos outros dois estados, lá o desenho dos distritos é definido por uma comissão independente e não pela legislatura estadual, o que significa que, para que a proposta seja aceita, ela precisa também ser aprovada em referendo popular.

A Proposta 50, como ficou conhecida, em resumo, autoriza temporariamente - até 2030 - o uso de mapas do Congresso dos EUA desenhados pela legislatura estadual, em vez da comissão independente tradicional, para as eleições de 2026, 2028 e 2030. Caso seja bem sucedido, o novo desenho daria ao partido democrata pelo menos mais cinco assentos.

Defendida por figuras como o governador Gavin Newsom e o ex-presidente Barack Obama, a proposta foi apresentada como uma estratégia de defesa da democracia e da representatividade diante das manipulações partidárias em outros estados.

Por outro lado, críticos como o ex-governador Arnold Schwarzenegger, argumentam que a Proposta 50 enfraquece o modelo de comissões independentes, criado justamente para evitar o gerrymandering, e abre um precedente perigoso ao permitir que interesses partidários interfiram no desenho dos distritos, ainda que sob justificativa temporária.

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O que vem agora?

Com a aprovação da Proposta 50 na Califórnia, o debate sobre o redesenho dos distritos ganhou força em outros estados. Ohio, Utah e Virginia já estão discutindo novos desenhos para os seus distritos, e estados com legislaturas de maioria republicana, como a Flórida e Indiana, já sinalizaram a intenção de revisar novamente seus mapas eleitorais antes das eleições de 2026, sob o argumento de corrigir distorções populacionais ou atender a novas decisões judiciais.

Por outro lado, estados governados por democratas como Illinois e Maryland estudam adotar medidas semelhantes à da Califórnia, justificando-as como uma forma de equilibrar o impacto do gerrymandering em nível nacional.

Diante desse cenário, é possível que os próximos meses sejam marcados por uma série de disputas judiciais, inclusive com apelos à Suprema Corte, que historicamente tem evitado intervir diretamente em casos de gerrymandering político, mas que pode ser novamente chamada a se pronunciar diante da escalada de medidas estaduais e de seus possíveis efeitos sobre o equilíbrio partidário no Congresso.

The Conversation
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Foto: The Conversation

Juliana Aparecida Sousa Carvalho não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.

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Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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