Opinião: Tese do STF sobre punir veículos de imprensa pode levar a autocensura

Sempre que uma informação de interesse público é escondida do povo, algum sacana se beneficia por não sair no jornal

1 dez 2023 - 16h04
Plenário do STF
Plenário do STF
Foto: Gustavo Moreno SCO/STF

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que firmou uma tese permitindo a possibilidade de responsabilização civil de empresas jornalísticas que publicarem declarações de um entrevistado que atribui crimes de forma falsa a uma terceira pessoa é uma confusão. A tese, que servirá de base para julgamento país afora, traz mais dúvidas do que respostas e pode levar à autocensura de jornalistas.

O caso: por 9 a 2, o STF estabeleceu o entendimento de que jornais podem ser responsabilizados civilmente por injúria, difamação ou calúnia em razão de declarações feitas em entrevistas. O caso analisado era sobre uma entrevista publicada em 1995 pelo jornal Diário de Pernambuco.

Publicidade

Foi analisada a entrevista de um político alinhado ao regime militar, que acusou o ex-deputado Ricardo Zarattini Filho de ter participado de um atentado realizado em 1966, que resultou em mortes. Quando a publicação se deu, já havia indícios de que tal acusação era manifestamente falsa.

No informativo do STF sobre o julgamento, disponível no site do Supremo, há o questionamento jurídico do caso: A empresa jornalística pode ser condenada pela publicação de entrevista na qual o entrevistado, sem ter provas, acusa outra pessoa de praticar um crime?

O entendimento do STF é de que sim, pode, em situações “muito excepcionais,”, quando houver duas condições: 1- à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e 2- o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios.

E a confusão se dá aí, pela vagueza do entendimento e ambiguidade. Quais são as situações excepcionais? Serão os juízes que vão definir o que são “indícios concretos” e “o veículo deixou de observar” a veracidade dos fatos? Como e a partir de quê?

Publicidade

Em quantos casos é possível ter uma prova definitiva sobre um caso de racismo, de estupro, uma denúncia de um esquema de corrupção negociado no fio do bigode? Em casos assim, a fala do denunciante será ignorada pela imprensa - e consequentemente, omitida da população?

Considerando este novo entendimento, como proceder em uma entrevista ao vivo na TV, no rádio ou na internet que o entrevistado resolva botar a boca no mundo e trazer denúncias graves?

Recorro ao caso do Mensalão, quando, em 2005, o então deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) foi à repórter Renata Lo Prete, na Folha de S. Paulo, dizer que o governo Lula (PT) comprava apoio ilegal no Congresso. O que sustentava sua denúncia era sua fala.

Assim como as denúncias sobre os abusos de João de Deus. O caso veio à tona em dezembro de 2018, quando vítimas deram entrevistas ao programa Conversa com Bial, da TV Globo, relatando abusos sexuais. 

Publicidade

Essas informações seriam publicadas hoje?

A publicação de uma denúncia assim, ainda que checada com todo rigor e reflexão ética, é um trabalho jornalístico. Isso significa esbarrar em alguns limites. Não se pode, por exemplo, acessar dados bancários e conversas privadas de uma pessoa, como nas investigações policiais.

Outra questão: e se o entrevistado for um procurador acusando um político sem provas, mas com convicções do crime? Essa questão vai nos remeter à Lava Jato.

A discussão fica ainda mais turva quando considerada a realidade de veículos de imprensa menores e espalhados pelo interior do país. O custo de ter assessoria jurídica para avaliar cada caso de entrevista vai inviabilizar a publicação, perderá o veículo e a população.

Seja por decisão judicial ou autocensura, sempre que uma informação de interesse público é escondida do povo, a democracia se enfraquece e algum sacana se beneficia por não sair no jornal.

Publicidade

Bom fim de semana!

Este texto foi publicado originalmente na newsletter semanal Peneira Política, assinada por Guilherme Mazieiro. Assine aqui, gratuitamente, e receba os próximos conteúdos

Fonte: Guilherme Mazieiro Guilherme Mazieiro é repórter e cobre política em Brasília (DF). Já trabalhou nas redações de O Estado de S. Paulo, EPTV/Globo Campinas, UOL e The Intercept Brasil. Formado em jornalismo na Puc-Campinas, com especialização em Gestão Pública e Governo na Unicamp. As opiniões do colunista não representam a visão do Terra. 
Fique por dentro das principais notícias
Ativar notificações