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Marco Nanini: “Não tem saída senão viver a história da velhice. Me conformo”

Em entrevista ao Terra NÓS, ator recorda “saída do armário”, fala da vida a dois e da não-monogamia e detalha construção de João de Deus

31 out 2023 - 05h00
(atualizado às 11h11)
Marco Nanini como João de Deus na minissérie "João Sem Deus – A Queda de Abadiânia"
Marco Nanini como João de Deus na minissérie "João Sem Deus – A Queda de Abadiânia"
Foto: Mariana Caldas

Aos 75 anos, receber um novo personagem já não faz Marco Nanini tremer, literalmente, como quando se deparava com um novo papel décadas atrás. A experiência faz o susto ser menor, mas não inexistente. “Encaro com mais vivência e vou destrinchando o personagem. Alguns são mais difíceis; outros, mais fáceis. Esse foi assustador”.

O ator veterano se refere a João de Deus, o médium criminoso que ele intrepreta em “João Sem Deus - A Queda de Abadiânia”, minissérie do Globoplay. “A história do João de Deus é assustadora. O convite para interpretá-lo me assustou tanto quanto. Porém, algumas coisas me fizeram aceitá-lo de bom grado: primeiro, a equipe por trás da série. Marina Person, uma diretora excelente, criou uma equipe só de mulheres para contar essa história do ponto de vista das vítimas. As protagonistas são as vítimas, as mulheres abusadas por João de Deus, e não ele. O personagem de João de Deus é apenas uma participação, um coadjuvante”.

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NÓS na Vitrine: Marco Nanini reflete sobre “João Sem Deus” NÓS na Vitrine: Marco Nanini reflete sobre “João Sem Deus”

Curiosamente, o primeiro palco em que pisou Marco Nanini – à época Marco Antônio, um menino esguio e alto, de nariz potencialmente grande – foi em uma igreja. As idas à missa, no Rio de Janeiro, eram quase obrigatórias pela mãe, Cecy Nanini, católica fervorosa de uma família mais católica ainda. Precisaram de um voluntário para interpretar João Batista numa sexta-feira santa, e o menino foi convidado. Topou na hora. 

Uma longa história

Nanini teve os melhores professores de teatro – foi pupilo da braba Dercy Gonçalves durante os anos 1960 no Rio de Janeiro; cresceu artisticamente com Marília Pêra numa união bombástica e explosiva, de amor e ódio, que sem tranquilidade não tinha como durar muito mesmo. Mas, antes do fim, a união foi proveitosa e rendeu a Nanini personagens ótimos e um aperfeiçoamento de seu talento. 

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Marco Nanini e Marília em "Brega e Chique": um clássico da atuação da dupla
Foto: Reprodução

Se reconhecer como um senhor foi inevitável, mas marcante, apesar de Nanini não se lembrar exatamente do momento em que essa ficha caiu. Se lembra, entretanto, do instante em que entendeu que não era mais jovem. Que o papel de jovem não mais lhe servia, e que a partir de então, assumiria o personagem senhor, mesmo.  

A idade fez com que Nanini fizesse algumas concessões: abrisse mão de álcool e de cigarro – a mais difícil das lutas, segundo ele – e da fatal combinação Mandrix com gin tônica. 

Eu era muito mais difícil antes. Agora, faço tudo do meu jeito, ao meu tempo.

Mandrix, um remédio muito consumido nos anos 1960 e 1970 que causava um relaxamento instantâneo e, junto de bebida alcoólica, uma vibe tão incandescente que virou adjetivo. Segundo a biografia de Nanini, “O Avesso do Bordado”, escrita por Mariana Filgueiras, tudo que era exageradamente bom Nanini chamava de Mandrix com gin tônica.

A combinação não foi abolida agora, aos 70, mas muitos anos antes. Agora, Nanini baniu carne e aderiu às práticas de fisioterapia e pilates. Ele conta. “Quando me reconheci como um senhor, passei a me cuidar muito mais. Tento proteger essa história da velhice. A gente não tem saída senão viver isso. Me conformo e aproveito esse tempo”.

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Posicionamento

Nanini é veterano no que diz respeito à atuação, mas tem menos tempo como voz pública a declarar sua sexualidade e assim se posicionar a respeito das vivências LGBTQIA+. Não por nada, apenas porque fala pouco da vida pessoal. No entanto, sua discrição foi vencida por um evento de violência contra o qual sentiu que não podia mais se calar.

A descoberta da homossexualidade foi um processo muito natural para Nanini. Algo que aconteceu durante sua juventude, enquanto transpirava arte nos teatros pelo Brasil. Foi na época da República Resedá, quando compartilhava morada com Zezé Motta e Wolf Maya num esquema de amor-livre bem setentista, que ele decidiu contar aos pais sobre sua sexualidade.

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Viajou até a Ilha de Paquetá, no interior do Rio de Janeiro, onde os pais abriram uma pousada e dela cuidavam. Ele, nessa época, já morava na república, depois de pingar de quartos de pensão em quartos de pensão, em que seus pés sequer cabiam nas camas pequenas. À mãe, Nanini foi direto ao ponto, sem rodeios. Quem reproduziu a informação ao pai foi Cecy, algo que era comum na família. 

Não pareceu haver susto nas reações de ambos, que pareciam não estar ouvindo qualquer novidade.

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“Minha sexualidade nunca foi um problema”, diz. “Sempre foi muito admitida sem nenhum medo, sem rigor nem nada. Só fui um pouco retraído nesse sentido porque não é do meu feitio falar da minha vida particular. Não me interessa em nada. Mas, quando houve aquele trágico episódio em São Paulo em que um casal de homossexuais foi agredido com uma lâmpada, entendi que como figura pública precisava me posicionar. E esse posicionamento passaria por uma revelação pública. Então, muito discretamente, revelei”.

Parceria de tempos

Marco Nanini adora bichos. Quando morou na República Resedá – um dos períodos de sua vida que considera Mandrix com gin tônica –, o espaço era também cheio de bichos: cachorros, gatos e todos que quisessem adentrar. 

Hoje, seus cachorros são compartilhados com seu companheiro, o produtor Fernando Libonati, que é também vizinho de Nanini. Os dois vivem em casas separadas por um muro, e nesse muro há uma passagem para que os cães vivam de lá para cá, daqui para lá. 

Nanini e Libonati em fotografia antiga que faz parte da biografia do ator: parceria de 38 anos
Foto: Divulgação

Fernando e Nanini estão juntos há 38 anos, numa relação anárquica tal qual sua arte. Cada um em sua casa, sem acordos de monogamia e com a possibilidade de novos encontros amorosos durante a vida. Sempre foi assim, desde antes de virar moda a discussão do formato de relacionamento quando a paixão começa. Libonati produziu o projero “As Cadeiras”, estrelado por Nanini e Camila Amado durante a pandemia de coronavírus.

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Temos uma união estável, mas somos grandes amigos. Passou a fase do casamento, é normal. Todo casamento longo acaba nessa amizade. O desejo é passageiro.

O relacionamento de Nanini e Fernando começou há quase quatro décadas, num acordo desde o princípio de que o amor dos dois não seria uma prisão. “Isso não vale só para casais homossexuais, deve valer para casais heterossexuais também. As pessoas matam por causa de ciúme, e isso é algo fora do meu raciocínio. Se uma pessoa tem desejo por outra, o que fazer? Vai impedir?”.

“Para nós, entretanto, não funcionava essa coisa de expor. Não preciso ficar sabendo de tudo, dos amores dele, mas que viva sua vida. Nos casais heterossexuais, começou-se agora a falar sobre isso, sobre a não-monogamia. Quanto mais a mulher se liberta, menos coadjuvante ela se torna em um relacionamento”.

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Perdas e ganhos

Talvez o grande apego pelos animais de Nanini tenha raiz em um acontecimento seminal em sua vida. Ele se apaixonou por um bichinho pela primeira vez quando era criança: um sabiá que cantava na janela de seu banheiro, na primeira casa em que morou com os pais, em Recife. Um dia, ao entrar no banheiro, o sabiá estava morto no chão. Foi uma dor terrível, talvez o primeiro contato de Nanini com tamanha dor. Tal sensação voltou a permear sua mente algumas vezes, quando precisava de drama e dor em algum personagem.

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Camila Amado e Marco Nanini em "As Cadeiras": parceiros na amizade e na criação até o fim
Foto: Divulgação

Durante a pandemia de coronavírus, o ator e a amiga de longa data Camila Amado fizeram “As Cadeiras”. Foi o último papel interpretado por ela. Era para ser uma peça, mas o agravamento da crise sanitária impossibilitava a cada dia o reencontro com o público, fazendo com que Libonati, parceiro de Nanini e produtor do projeto, decidisse filmar o espetáculo.

Nanini e Camila celebraram, com a peça, uma amizade de meia década. Durante as filmagens, ela descobriu um câncer e, também enquanto gravava, decidiu parar o tratamento quimioterápico. 

Pouco depois da estreia do filme, Camilla morreu, um adeus difícil para Nanini. Doloroso tal qual a morte de um passarinho que visitava sua janela quando menino, quando inocentemente entendeu que a morte era o fim da vida. A morte, no entanto, jamais será o fim da arte.

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Fonte: Redação Nós
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