Toda criança tem direito à infância. Uma infância de qualidade, acompanhada do brincar e de um desenvolvimento sadio. Por mais que também seja dever de toda a sociedade zelar por isso, nem sempre é o que acontece. Como nos casos de adultização infantil, que expõe os pequenos de forma precoce a comportamentos e responsabilidades que não condizem com sua idade. Os impactos disso são muitos e, devida à complexidade, as formas de enfrentamento também são diversas.
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O termo adultização descreve o fenômeno por meio do qual crianças são estimuladas a se comportar como se fossem adultos. Isso pode se manifestar de diversas formas, podendo ir desde cobranças excessivas à erotização e à sexualização das crianças. Por conta dessa multiplicidade, não há uma métrica específica que meça o quanto a adultização se faz presente na sociedade ou num determinado contexto.
Mas o que é possível notar no Brasil é que à medida que os meios de comunicação em massa evoluem e se fazem cada vez mais presentes na vida das pessoas, as crianças vão se tornando cada vez menos blindadas do universo adulto e da exploração de suas imagens. É o que explica ao Terra João Francisco Coelho, advogado digital do instituto Alana, organização que atua em prol dos direitos das crianças há cerca de 30 anos.
Exemplos de adultização nas redes sociais, conforme listado pelo Alana:
- Influenciadores mirins: crianças que produzem conteúdo com rotina, aparência ou linguagem de adultos, incentivadas a sensualizar, usar maquiagens pesadas ou adotar discursos e comportamentos incompatíveis com sua idade. Quanto mais visual e chamativo for o conteúdo, mais ele é impulsionado pelos algoritmos — e isso não considera a proteção da criança, apenas o lucro da plataforma;
- Crianças promovendo jogos de azar: investigações mostraram que menores de idade têm sido usados para divulgar, em redes sociais, jogos ilegais como o Jogo do Tigrinho. O objetivo é dar uma aparência de inocência ao produto — prática proibida no Brasil – e atrair o público mais jovem;
- Famílias influenciadoras: perfis que transformam a vida cotidiana de crianças em conteúdo monetizado, expondo detalhes íntimos, dificuldades e momentos constrangedores para milhões de pessoas;
- Vídeos com sexualização precoce: coreografias, desafios e encenações com conotação sexual, amplamente difundidos por algoritmos que favorecem vídeos com alto apelo visual. Conteúdos sexualizados com crianças são até 10 vezes mais recomendados pela plataforma do que conteúdos comuns, aumentando a exposição a públicos de risco.
Como proteger as crianças?
O cenário é complexo e, por isso, requer medidas diferentes. Uma delas é a intervenção regulatória pela proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, pontua Coelho.
Ele explica que uma das principais causas do fenômeno da adultização no Brasil é a violência sexual, causada principalmente pela falta de proteção da imagem da criança e de seus direitos nos ambientes digitais. Assim, uma forma de garantir uma conformidade maior desses ambientes aos direitos da criança é vedando que conteúdos que são inadequados a essa faixa etária chegue às crianças e estimulem essa adultização.
“A gente faz isso colocando limites à publicidade voltadas às crianças, que muitas vezes estimula também a sua adultização”, pontua. Coelho cita, por exemplo, a publicidade de maquiagens, que muitas vezes estimula meninas muito novas a se comportarem como se fossem mais velhas, desejando produtos que são vendidos para adultos.
Outro ponto é pensar em esquemas de moderação de conteúdo, para tirar do ar conteúdos que retratam os piores aspectos dessa adultização. “Existem uma série de medidas que a gente precisa tomar em relação ao ambiente digital para fazer frente a esse cenário, mas são medidas também que partem de direitos que já se encontram reconhecidos pela nossa legislação”, explica.
No caso, o principal mecanismo de proteção aos direitos das crianças e adolescentes é o Estatuto da Criança e do Adolescente – também conhecido pela sua sigla, ECA.
“No artigo 15, o ECA diz que a criança e o adolescente têm direito ao respeito enquanto pessoas que atravessam fases peculiares de seu desenvolvimento. Isso, por si só, já é uma disposição que consagra no nosso ordenamento jurídico uma recusa dessa adultização e uma ideia de que a criança e o adolescente têm que ser protegidos enquanto tal”, diz Coelho.
Apesar desses direitos estarem previstos na legislação brasileira, não eliminam a necessidade de serem pensadas regras mais específicas para o combate dessas forças que têm estimulado a adultização na sociedade, segundo o especialista.
Importância de redes de proteção
Para além das legislações em si, é importante que haja uma articulação entre instituições governamentais e não governamentais, de setores como educação, saúde, assistência social e justiça, para garantir os direitos fundamentais das crianças, assim como prevenir que eles não sejam desrespeitados. E isso é chamado de Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente.
Laís Flores, mestra em psicologia do desenvolvimento pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), explica que a escola não é suficiente para dar conta das necessidades apresentadas pelas crianças e adolescentes. "Construir espaços coletivos de diálogo e desenvolver ações conjuntas entre serviços de setores diversos são fundamentais para aumentar a efetividade das ações e otimizar a utilização dos recursos disponíveis."
Ao fortalecer a convivência familiar e comunitária, esses laços protegem as crianças e também diminuem o risco de agravamento de algum direito que possa já ter sido violado. Segundo a especialista, essa rede pode proteger a adultização precoce em diversas frentes, como:
- Escola - onde há um contato direto e mais constante com as crianças e adolescentes, que pode identificar e conscientizar a comunidade escolar sobre, por exemplo, o uso excessivo de maquiagem, estéticas de roupas ainda voltadas ao público adulto;
- Unidades de saúde - promovem um cuidado integral das crianças e adolescentes com um olhar também para a saúde mental, identificando precocemente sinais de ansiedade e de depressão;
- Serviços de abordagem nas ruas - identificam crianças e adolescentes que estão em festas que não estão condizentes com a faixa etária, ou em risco e em situações de exposição.
Problemática da adultização ‘furou a bolha’
Não é de agora que há um movimento de políticas públicas, organizações e pessoas em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes – que se comprometem com o combate de diversos tipos de abusos, incluindo o da adultização infantil. Mas foi um vídeo, publicado no início deste mês, que fez com que o debate “furasse a bolha”, ganhasse repercussão nacional e passasse a ser uma preocupação para muitos que ainda não tinham se atentado a essa questão.
Estamos falando do conteúdo feito pelo youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca. No caso, ele publicou um vídeo, batizado de ‘Adultização’, denunciando um esquema de exploração e sexualização de menores de idade por meio da criação de conteúdos na internet. A exposição dos casos levou à prisão de Hytalo Santos e seu marido, Israel Vicente – que agora são investigados pelo Ministério Público da Paraíba (MPPB) e pelo Ministério Público do Trabalho por suspeita de exploração de menores.