Parem de tratar a Lecar como se fosse a Toyota brasileira – mas não a matem

Lecar ainda está longe de ser uma montadora, mas merece ser acompanhada com realismo – e não com fantasias ou execuções prematuras

28 nov 2025 - 11h36
Lecar Campo no Salão do Automóvel 2025
Lecar Campo no Salão do Automóvel 2025
Foto: Sergio Quintanilha / Guia do Carro

Vejo reportagens e “conteúdos” sobre a Lecar que me causam vergonha alheia. A Lecar é uma empresa brasileira que pretende fabricar veículos nacionais. Trata-se de uma visão empresarial nacionalista ousada e – no contexto atual – de baixa viabilidade técnica. Hoje, é inviável para o Brasil fazer um carro moderno totalmente nacional.

Conversei longamente com o empresário Flavio Figueiredo Assis durante o Salão do Automóvel. Ele me pareceu ter boas intenções e expressa muita vontade de sair da fábrica de sonhos e entrar na fábrica de realidades.

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Mas eu não sou especialista em boas intenções. Sou especialista – isso sim – em automóveis e, principalmente, em jornalismo. Então, parem de tratar a Lecar como se ela fosse a Toyota. Já vi reportagem dizendo que ela vai comprar uma fábrica para “ampliar a produção”.

Chamar a Lecar de “montadora brasileira”, hoje, é um erro de informação. Também é errado chamá-la de startup, pois ela não apresenta, até o momento, nenhuma inovação tecnológica comprovada. Tampouco seus produtos são tecnicamente inovadores, embora a fórmula pensada por Figueiredo tenha pontos disruptivos, o que é positivo.

Lecar Campo no Salão do Automóvel 2025
Foto: Sergio Quintanilha / Guia do Carro

A força da Lecar está na garra de seu dono, Flavio Figueiredo Assis, e não na velocidade do empreendimento, que parece ser mais virtual do que físico. O empresário tem aprendido, a duras penas, que não há portas abertas – é preciso arrombá-las. Seu maior trunfo é exatamente o sonho de ver uma montadora genuinamente nascida no Brasil disputando espaço com gigantes transnacionais, como Toyota (Japão), Renault (França), Fiat (Itália), Volkswagen (Alemanha), Chevrolet (Estados Unidos), BYD (China) e Hyundai (Coreia).

Segundo ele, a Lecar vem sendo bancada por uma startup e atraiu a atenção de uma empresa chinesa. Não duvido, pois Figueiredo conta com a experiência de Rodrigo Rumi (ex-CAOA Chery) como VP de marketing e vendas. Rumi tem uma postura realista, viajou algumas vezes para a China e tenta fazer a Lecar sair do plano dos sonhos.

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Mas é só. Não sabemos se há um engenheiro responsável pelos projetos dos modelos Lecar 459 (crossover), Lecar Campo (picape) e Lecar Tático (SUV). Há design, apenas. E seu autor, Romis Carmo, que atua como designer há 20 anos – embora tenha demonstrado bom gosto e criatividade no desenho dos carros – nunca trabalhou na indústria automotiva.

Não há informações sobre ergonomia, arquitetura eletrônica ou três itens fundamentais de um automóvel: direção, freios e suspensão. O powertrain anunciado é um mix da Horse com a WEG, o que pode ser bom, mas nunca foi aplicado em um automóvel. E o motor a combustão da picape Lecar Campo exibida no Salão era, na verdade, uma peça impressa em 3D. Só aparência.

Lecar Campo no Salão do Automóvel 2025
Foto: Sergio Quintanilha / Guia do Carro

Entre o oba-oba de alguns setores da mídia e a reação raivosa de outros, vejo o plano da Lecar de se tornar uma montadora como algo positivo. Especialmente porque, no cerne do projeto, está o barateamento dos carros, com preços mais acessíveis à tecnologia. Entretanto, contestei fortemente, ao próprio Flavio Figueiredo Assis, a divulgação de preço de um carro que nem sequer saiu dos aplicativos de Inteligência Artificial – porque a picape Campo apresentada no Salão é apenas um protótipo não funcional. Está longe de ser um protótipo de pré-produção.

O empresário rebateu: “O preço é a primeira coisa que a gente sabe ao fabricar um carro”, disse. Ele também afirmou que já há alguns carros vendidos; não disse quantos. É parecido com comprar um apartamento “na planta”.

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De resto, a única certeza que tive, ao conversar com o dono da Lecar, foi que os prazos foram alongados e todas as fichas agora estão apostadas em uma possível parceria com uma empresa chinesa. Entretanto, se isso vingar, cai por terra o sonho de uma montadora 100% nacional. A marca Lecar pode ser, mas a fabricante Lecar, não.

E se o governo investisse na Lecar?

Tentativas anteriores, como a da Gurgel e da JPX (de Eike Batista), fracassaram. João Gurgel era contra o carro a álcool (etanol), o que eliminou qualquer chance de apoio do governo militar. Ainda assim, fabricou vários modelos. A JPX surgiu em 1992 e teve apoio do governo civil, vendendo veículos para o Exército brasileiro. Mesmo assim, tecnicamente os dois carros eram deficientes.

Na hora de usar o produto, o consumidor não distingue se o carro é brasileiro, alemão ou chinês. Se for ruim, ele deixa de comprar – simples assim. Por tudo isso, a Lecar não pode ser chamada de “fabricante brasileira de veículos híbridos e elétricos 100% brasileira”, como está em seu site – com a palavra brasileira usada duas vezes nessa frase curta e com a promessa de “revolucionar a mobilidade no Brasil e na América Latina”.

Talvez a Lecar esteja sendo tratada como uma espécie de Toyota tupiniquim – capaz de produzir um carro revolucionário em pouco tempo – ou, pior, como uma Tesla, empresa que redefiniu a indústria do século 21 com a aposta em veículos 100% elétricos. A própria Lecar tenta passar essa imagem. Mas isso, em vez de ajudar, joga pressão sobre a empresa, o que torna seus passos mais difíceis.

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Flavio Figueiredo Assis e o protótipo não funcional da picape Lecar Campo
Foto: Sergio Quintanilha / Guia do Carro

Flavio Figueiredo Assis, por sua vez, se apresenta como um revolucionário. Muitos da imprensa o chamam de “Elon Musk brasileiro”, o que é um exagero. Ele tem o seu valor pelo que é, pela sua ideia, e não precisa desse tipo de comparação, que parece servir apenas para alimentar algoritmos de busca. De qualquer forma, seu projeto desperta grande interesse das pessoas e da imprensa – fato que ficou evidente já nos primeiros dias do Salão do Automóvel 2025.

Assim como ocorreu na China, se o Brasil, por meio do governo, criasse um incentivo real para que a Lecar se tornasse uma marca de bandeira nacional, certamente o sonho seria mais fácil de realizar. Porém, se fizesse isso, no mínimo o governo teria que considerar esse apoio também para a CAOA, que, ao contrário da Lecar, já tem fábrica, rede de revendas e experiência no setor.

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