Existem momentos na história dos videogames em que tudo parece prestes a mudar. Antes de a Nintendo dominar os anos 80, antes do Mega Drive e do Super Nintendo transformarem rivalidade em arte, antes de o PlayStation redefinir toda uma geração, houve um pequeno lampejo de futuro vindo de um lugar improvável: a Mattel. Sim, a mesma Mattel dos brinquedos do He-Man, dos carrinhos Hot Wheels e do universo cor-de-rosa da Barbie.
Em 1979, ela lançou o Intellivision — e, por alguns anos, o mundo dos games ficou realmente diferente. O console não era apenas mais um competidor do Atari 2600. Ele era O competidor. O sistema que ousou dizer “nós somos melhores”, e tinha argumentos para isso. Gráficos mais definidos, som mais sofisticado, jogos mais complexos, tudo em uma época em que os videogames ainda estavam aprendendo a caminhar. O Intellivision parecia ter pulado etapas. Era como se, de repente, o futuro tivesse sido empurrado para dentro da sala de estar. E então, de repente, desapareceu.
A Mattel que virou gigante dos bits
Para entender a coragem da Mattel, é preciso lembrar: a empresa, que foi fundada em 1945, era uma potência dos brinquedos físicos. Entrar no universo digital parecia um movimento arriscado — e ao mesmo tempo inevitável. A Atari havia aberto as portas em 1977, e havia um campo fértil para quem quisesse inovar. A Mattel entrou com a ousadia de quem nunca tinha produzido um videogame, mas estava acostumada a ditar tendências.
E o Intellivision realmente trazia ideias novas. Os controles com disco direcional de 16 posições pareciam estranhos à primeira vista, mas eram revolucionários em precisão. Os overlays — cartões plásticos que você encaixava no controle para mapear comandos — davam personalidade a cada jogo, como se o seu joystick se transformasse em um novo aparelho sempre que você trocava o cartucho.
Era uma época de experimentação genuína, onde ninguém sabia exatamente o que um videogame deveria ser. E talvez por isso a Mattel tenha conseguido arriscar mais do que as concorrentes.
Tecnologia ousada em um mundo de pixels tímidos
Se o Atari 2600 representava a simplicidade, o Intellivision queria provar que cabia mais profundidade dentro de um cartucho de plástico. Seus jogos tinham personagens articulados, cenários mais detalhados e animações fluídas — coisas que, para a época, pareciam quase ficção científica.
Major League Baseball, por exemplo, foi um divisor de águas. Não era só um jogo de baseball; era um jogo complexo, com estatísticas, jogadas estratégicas e uma inteligência artificial avançada para os padrões de 1979. O mesmo vale para Utopia, considerado por muitos o primeiro jogo de estratégia em tempo real — um antepassado distante de SimCity e Civilization.
Ali, no final dos anos 70, o Intellivision mostrava que os videogames podiam ser mais elaborados do que apenas mover um pontinho na tela. Ele provava que profundidade, narrativa e estratégia cabiam em um console doméstico.
Propaganda afiada — e a primeira Guerra dos Consoles
A rivalidade entre Mattel e Atari parece inocente hoje, mas foi um dos primeiros “consoles wars” da história. A Mattel não apenas acreditava que seu hardware era melhor — ela fazia questão de mostrar. Comerciais comparavam lado a lado os jogos de ambos os consoles, quase provocando: “Olha como o nosso faz melhor”. E, por um tempo, funcionou.
A imprensa especializada da época começou a olhar para o Intellivision como algo mais sofisticado. Os jogadores perceberam que havia profundidade ali. A Atari, pela primeira vez, sentiu o chão tremer. Foi uma pequena revolução — e poderia ter sido uma grande.
No início dos anos 80, a Mattel Electronics parecia imbatível. Em 1981, já controlava quase 20% do mercado de videogames domésticos — um feito impressionante para uma empresa que havia acabado de entrar no setor. Em apenas alguns anos, o Intellivision alcançou mais de 3,75 milhões de unidades vendidas e ultrapassou a marca de 20 milhões de cartuchos distribuídos até 1983.
O crescimento foi tão acelerado que a divisão chegou a reunir cerca de 1.800 funcionários espalhados pelo mundo, com um time de aproximadamente 110 desenvolvedores dedicados exclusivamente a criar jogos. Por um breve momento, a Mattel não era apenas uma fabricante de brinquedos: ela era uma gigante tecnológica em ascensão.
Intellivision no Brasil
E no Brasil, o Intellivision ganhou um status quase mítico. Diferente do Atari 2600 — que se tornou onipresente graças à Polyvox — o console da Mattel apareceu por aqui de forma oficial através da Digiplay, uma subsidiária da Sharp do Brasil, em 1983. Assim, o Intellivision recebeu embalagens, manuais e até suporte técnico adaptados para o mercado brasileiro, algo raro para consoles diferentes do Atari naquele período.
No entanto, o Intellivision era um console caro até nos Estados Unidos — e no Brasil, onde impostos e margens aumentavam tudo, ele se tornou praticamente um item de luxo. O Atari, sendo mais simples e com vários clones nacionais, era muito mais acessível.
Isso fez com que, para muitos jogadores brasileiros dos anos 80, o Intellivision fosse quase uma lenda urbana: um videogame avançado, com gráficos “de outro planeta”, que poucos tinham visto ao vivo. Ele acabou se tornando aquele console “do primo distante”, mas que, ainda assim, alimentava o imaginário de uma geração que começava a descobrir o que os games podiam ser.
O começo do fim: quando o mercado ruiu
O Intellivision estava no caminho certo. Mas o mercado de videogames, em 1983, não estava. A famosa crise dos videogames — resultado de saturação, jogos apressados e decisões corporativas desastrosas — derrubou tudo ao redor, incluindo a Atari e também a Mattel Electronics.
Mesmo com tecnologia avançada, mesmo com ideias visionárias, o Intellivision não resistiu ao colapso. Foi vítima de um terremoto que ele não causou, mas que engoliu qualquer um que estivesse no mercado naquele momento.
Em 1984, após o colapso do mercado de videogames e prejuízos estratosféricos, a Mattel decidiu se desfazer de sua divisão eletrônica. Os ativos do Intellivision foram comprados por um ex-executivo da própria Mattel Electronics, acompanhado de um grupo de investidores, dando origem à INTV Corporation. Assim, o console ganhou uma sobrevida inesperada.
A nova empresa manteve a produção e a criação de jogos por vários anos, estendendo o ciclo do Intellivision muito além do que qualquer um imaginava. Até 1990, o sistema continuou recebendo lançamentos e suporte, até finalmente ser descontinuado — encerrando uma trajetória que atravessou momentos turbulentos, mas marcou seu espaço na história dos videogames.
A marca ainda sobreviveria mais alguns anos nas mãos de outras empresas, passando por reedições, coleções e tentativas de retorno, mas o brilho pioneiro dos primeiros anos ficou congelado no tempo.
Atualmente, a marca e todo o catálogo do Intellivision foram comprados pela Atari SA, reunindo novamente as duas grandes rivais da era dourada dos videogames. A empresa não perdeu tempo e anunciou recentemente o Intellivision Sprint, um console retrô que revisita o design clássico do sistema original e busca capturar a mesma sensação tátil e nostálgica que marcou o início dos anos 80.
Com lançamento previsto para dezembro de 2025 e preço de US$ 150, o Intellivision Sprint chegará trazendo 45 jogos clássicos já na memória, oferecendo uma coleção curada do legado da plataforma.
O legado do quase
No fim das contas, o Intellivision foi mais do que um concorrente direto do Atari 2600 — ele foi uma declaração de ambição. A Mattel queria provar que os videogames podiam ir além de gráficos simples e controles rudimentares, apostando em hardware mais sofisticado, em comandos diferentes de tudo o que existia e em um marketing agressivo que falava com confiança sobre o futuro.
Mesmo que essa ousadia não tenha se traduzido em hegemonia comercial, ela deixou marcas profundas na indústria, antecipando padrões que só seriam amadurecidos anos depois. Um sistema que quase redesenhou o rumo do mercado, quase impôs um novo padrão, quase consolidou a ideia de jogos mais complexos muito antes do tempo.
Mas o “quase” não diminui seu impacto — pelo contrário. O Intellivision permanece como um lembrete de que inovação exige risco, ousadia e, às vezes, estar disposto a correr à frente do seu próprio tempo.