Em ‘Vale Tudo’, Odete Roitman (Debora Bloch) é racista, mas ‘esquece’ a cor da pessoa preta quando ela pode ser útil aos seus planos maquiavélicos.
Manipuladora, a empresária promove uma falsa inclusão: faz o negro se sentir enxergado e valorizado. Acena com dinheiro para convencê-lo a ignorar a ética para cumprir alguma tarefa ilegal ou imoral.
Foi assim com Maria de Fátima (Bella Campos), cooptada para que Odete tivesse controle absoluto sobre o filho Afonso (Humberto Carrão).
O mesmo ocorreu com Luciano (Licínio Januário), o subalterno na TCA que traiu o amigo Ivan (Renato Góes) em troca da promessa de promoção oferecida pela chefe ardilosa.
A secretária Consuelo (Belize Pombal) é aceita pela matriarca dos Roitman por ser eficiente na empresa e funcional quando precisa cumprir missões sigilosas, como espionar Marco Aurélio (Alexandre Nero) e movimentar dinheiro sem registro oficial para pagamentos pessoais de Odete.
Uma das beneficiárias dos depósitos era Nice (Teca Pereira), cuidadora de Leonardo (Guilherme Magon). A humilde senhora dedicou 13 anos da vida a guardar o segredo da patroa, sendo maltratada por ela a cada encontro.
Estes quatro negros se tornaram meros objetos utilitários para Odete. Por isso, ela os tolera ou tolerou por perto. Uma relação parecida com a do senhor de engenho branco com o capitão do mato — este, geralmente um preto alforriado que se dedicava a perseguir e capturar escravizados em fuga pela liberdade.
O cidadão negro em busca de ascensão social e econômica, assim como os citados personagens da novela das 21h da Globo, invariavelmente terá de se embrenhar entre brancos controladores de poder.
Muitas vezes, obrigado a amenizar a própria identidade racial a fim de ser aceito e validado.
“Para o homem negro, há apenas um destino. E ele é branco”, escreveu o psiquiatra e filósofo francês Frantz Fanon, autor do clássico ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, de 1952.
Pretos são bem-vindos, até a página 2
‘Vale Tudo’ mostra o que ocorre na sociedade brasileira: a presença do negro é aceitável nos ambientes típicos da classe média e da elite quando ele está a serviço dos interesses do grupo dominante.
Basta o fim da serventia ou alguma provocação de contrariedade para que o branco racista volte a exalar o preconceito pelos poros, como vimos na cena em que Odete Roitman provocou Raquel (Taís Araújo) com o velho gesto de passar o dedo na pele — para indicar pejorativamente a cor escura da rival — quando disse que talvez a cozinheira fosse impedida de sair pela porta da frente do hotel 5 estrelas.
Ou ainda ao oferecer dinheiro para que Fernanda (Ramille) desistisse do interesse amoroso por seu neto Thiago (Pedro Waddington). Aos olhos da ricaça eurocêntrica, a jovem negra de família simples não serviria para o rapaz branco milionário.
Comprovação de que ela só aceitou a entrada de Fátima em sua família porque havia um objetivo importante a ser alcançado. Neste caso, até relativizou a negritude da vigarista. “Ela nem é tão preta assim”, disse.
Chama a atenção que, mesmo racista e inescrupulosa, também arrogante e insensível, Odete Roitman se tornou a personagem mais popular de ‘Vale Tudo’ nas redes sociais. Esta absolvição de comportamento desumano e criminoso — na ficção e na vida real — é puro suco de Brasil.