Há histórias que nascem da urgência. Outras, do afeto. Apolo, que chega aos cinemas nesta quinta-feira, 27, nasceu dos dois. O documentário dirigido por Tainá Müller e Isis Broken acompanha a gestação de Apolo, filho de Isis e Lourenzo Gabriel, um casal transgênero que enfrentou barreiras para ter um pré-natal digno em Aracaju. Mas o que poderia ser apenas um registro de denúncia se transformou em algo maior: uma carta de amor para o futuro.
"Eu estava no meio da pandemia, naquela inquietação, os trabalhos parados, e me deparo com essa notícia de que Isis e Lourenço estavam à espera de um bebê", lembra Tainá ao Estadão. O vídeo anunciando a gravidez, gravado à beira de um rio, tinha uma poesia que a tocou. Mas ao ler a reportagem completa, descobriu que nem tudo eram flores: Lourenzo, um homem trans, não conseguia atendimento pré-natal por conta da transfobia. "Como assim ele não está conseguindo ter pré-natal porque é uma pessoa trans? Isso me deixou muito impactada."
O encontro entre as duas artistas foi quase telepático. Três horas de conversa ao telefone, ideias em sintonia, e uma vontade compartilhada de fazer algo. "A Isis também já estava pensando em documentar", conta Tainá. "Foi uma coisa meio cinética mesmo." A solução veio em forma de sonho: fazer um álbum visual de bebê para Apolo, com a trilha original de Plínio Profeta embalando a narrativa.
"Eu tinha um medo muito grande desse documentário virar aquela coisa de que toda vez que uma pessoa trans está em um documentário, é só tristeza", explica Isis. "Tem uma criança envolvida nisso. Meu filho vai assistir. Então foi uma alternativa muito bonita e que trouxe uma estética muito inovadora."
Quando a vida vira arte (e vice-versa)
Para Tainá, que começou a carreira como jornalista na MTV antes de se dedicar à atuação, Apolo marca a estreia na direção de longas-metragens. Mas não é exatamente um território novo. "Eu fui assistente de direção, assistente de montagem, pensei até em seguir a carreira de montadora. Nesses 20 anos como atriz, fui tomando confiança também de assumir outras partes", conta.
Já Isis, artista sergipana, divide a direção com Tainá enquanto vive a história na frente das câmeras. "Todos os momentos tiveram suas particularidades e dificuldades, porque estávamos expondo a nossa família", reflete. "Apesar de tudo, sabíamos que não estávamos sozinhos. Tínhamos amor, coragem e o apoio de muitas pessoas."
A câmera na mão de Isis adiciona uma camada de intimidade ao filme. "A gente não consegue estar 24 horas com uma equipe de filmagem. A gente precisava dessa câmera em alguns momentos para ilustrar mais coisas, falar mais coisas. E tem cenas ótimas assim."
Amor que transforma estruturas
Apolo já conquistou o Coelho de Prata de Melhor Longa Nacional no 33º Festival MixBrasil, além de Menção Honrosa do Júri e dois prêmios no Festival do Rio — Melhor Longa-Metragem Documentário e Melhor Trilha Sonora Original.
Não é pra menos. O documentário humaniza corpos que a sociedade insiste em invisibilizar. "Eu tenho uma mãe, eu tenho um irmão, eu tenho uma avó", enumera Isis.
A narrativa foge do lugar-comum dos documentários sobre pessoas trans. Há ternura, humor, música. A família de Isis é engraçada, a de Lourenzo também. "Minha amiga me disse: 'Isis, eu chorei e ri o filme inteiro'", conta a diretora. "É uma família brasileira. Toda família tem seus percalços, suas dores. A gente briga com a tia, sabe? É uma família."
O futuro já começou
Apolo, o menino que dá título ao filme, hoje tem três anos e surpreende pela desenvoltura. "Com um ano, a psicóloga falou que ele tinha mentalidade de uma criança de três anos", revela Isis. "Ele abraça as pessoas, sorri. É perigoso, você tem que ficar vigiando senão ele sai sorrindo e abraçando todo mundo."
A existência dele — e do filme — já está mudando realidades. "Quase toda semana eu vejo no Instagram um casal trans novo, um homem grávido. As pessoas veem a gente como referência. Isso é muito bonito", diz Isis. Durante a gestação, ela e Lourenzo procuraram referências e não encontraram nada. Hoje, Apolo é o que eles gostariam de ter visto.
"A gente quer que esse filme impacte para além da comunidade trans", reforça Isis. "Que as pessoas saiam modificadas, transformadas. Que a gente consiga, pelo menos, não perder os direitos que conquistamos."
Tainá complementa. "A entidade 'família' é um conceito capturado no mundo inteiro hoje pela política. Mas há uma distorção que tenta limitar esse conceito a uma caixinha de 'normatividade'", diz. "Apolo vem para mostrar que outros modelos familiares não só são possíveis, como merecem igual respeito."