Cinábrio, o cobiçado mineral que antigas civilizações usavam em rituais sem saber que podia se tornar tóxico

Diversas culturas em diferentes regiões do planeta utilizaram o cinábrio para fins decorativos, medicinais, metalúrgicos e simbólicos, até ele cair em desuso.

14 mai 2024 - 16h49
O cinábrio se forma em rochas próximas à atividade vulcânica geologicamente recente, e às vezes perto de fontes termais
O cinábrio se forma em rochas próximas à atividade vulcânica geologicamente recente, e às vezes perto de fontes termais
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Bonito e perigoso assim como o fenômeno natural que costuma preceder sua origem, as erupções vulcânicas.

O cinábrio preenche as rachaduras que permanecem nas rochas, formando atraentes veias vermelhas que há milênios fascinam aqueles que o descobrem.

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E foram muitos que o descobriram, pois o mineral está presente em todos os lugares onde há ou houve vulcões.

Como aponta o portal Geology.com, esse é um dos poucos minerais que foram descobertos, processados e utilizados de forma independente por povos antigos em diversas partes do mundo.

O cinábrio podia ser facilmente moído e transformado em um pó fino que, misturado com diferentes líquidos, transformava-se em vários tipos de tinta.

Além disso, ele era - e continua a ser - o principal minério de mercúrio.

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Eis o problema: sua associação com esse metal pesado fez com que o cinábrio passasse de muito precioso para desprezado.

Mas antes que isso acontecesse, ele deixou uma marca em várias regiões do planeta.

Como pigmento - chamado vermelhão -, dava tons que iam do vermelho laranja brilhante ao violeta avermelhado mais apagado.

Há cerca de 10.000 anos, os primeiros artistas usaram-no para pintar imagens do auroque, um bovino gigante hoje extinto, nas paredes do antigo assentamento de Çatalhöyük, onde hoje é a Turquia; e em cerâmicas da cultura Yangshao na China (5000 a 3000 a.C.).

As escavações em Çatalhöyük revelaram murais de brilho excepcional (7000 a.C.)
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

No continente que os europeus batizariam de América, o cinábrio pode ser encontrado em túmulos, murais, máscaras, ornamentos e sobre metais preciosos das culturas da área andina e da Mesoamérica.

Máscara funerária, 900–1300 d.C., Peru
Foto: Getty Images / BBC News Brasil
Figura feminina sentada da cultura olmeca, 800/400 a.C., México. Cerâmica e pigmento com cinábrio
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Na Espanha - que abriga as lendárias minas de Almadén, em Ciudad Real, de onde foi extraída a maior quantidade de mercúrio do mundo ao longo de séculos -, a presença do mais antigo pigmento conhecido data de 6000 a.C.

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Jóias de ouro com esmalte de cinábrio, séculos 5-4 a.C. Península Ibérica, Idade do Ferro
Foto: The Metropolitan Museum of Art, New York / BBC News Brasil

A maior parte do vermelho profundo com o qual, séculos depois, os antigos romanos ricos pintavam suas paredes vinha de Almadén, e custava o triplo do precioso azul egípcio.

A Vila dos Mistérios de Pompéia, século 1, era uma vitrine do pigmento vermelhão, feito com cinábrio moído
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

No Renascimento, o cinábrio era usado em selos de cera para certificar documentos e como pigmento vermelho brilhante por artistas como Giotto, Tizano e Van Eyck.

Os vermelhos fortes de 'A Assunção da Virgem', do pintor renascentista Tiziano
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A Europa importou o vermelhão da China durante anos, pois o material era considerado mais bonito e puro.

Na própria China, o pigmento historicamente teve um lugar especial na cultura e, além de colorir as paredes de locais importantes como a Cidade Proibida, está presente em uma infinidade de objetos, como os de laca chinesa esculpida.

Pente da dinastia Shang, séculos 13-11 a.C., China, (ca. 1600-1046 a.C.). Jade com vestígios de cinábrio
Foto: The Metropolitan Museum of Art, New York / BBC News Brasil
Caixa esculpida em laca de cinábrio vermelho em forma de bola de futebol chinês (kemari), século 19
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Mais que belo

Além de seu uso decorativo na arte, em tatuagens, na maquiagem e, na Idade Média, como tinta para escrever, em muitas culturas o cinábrio foi usado para fins medicinais, metalúrgicos e simbólicos.

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É que ele tinha algumas propriedades incomuns.

Como o filósofo grego Teofrasto observou, "quando esmagado com vinagre em pilão de cobre, dá prata líquida (como era comum referir-se antigamente ao mercúrio)".

É ainda mais estranho o que acontece quando ele é aquecido em um forno, o que se fazia há milhares de anos: o mercúrio escapa na forma de vapor, que se condensa em mercúrio líquido.

Em 'Alquimia' (1570), a seção 'Usar a alquimia da maneira certa' começa com a imagem de um forno e uma receita para o pigmento vermelho cinábrio
Foto: Science History Institute / BBC News Brasil

Em sua História Natural, o escritor romano Plínio, o Velho, relata que o mercúrio dissolve o nobre metal ouro.

Esse processo de amalgação se tornaria um dos principais métodos de purificação do ouro ao longo dos séculos.

Os romanos importavam cinco toneladas de mercúrio por ano e a maioria era usada com esse propósito.

A mistura podia ser usada para fazer objetos dourados, colocando-os no forno para que o mercúrio desaparecesse e revelasse uma camada lustrosa do mais puro ouro.

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E havia mais.

Os alquimistas tinham descoberto que podiam produzir o cinábrio aquecendo mercúrio e enxofre.

A transformação do cinábrio em mercúrio e sua reversão, convertendo-o em cinábrio novamente, era um processo cíclico aparentemente inexplicável - para alguns, semelhante ao da ressurreição do corpo.

Por isso, alguns povos acreditavam que o material proporcionava poderes especiais, explicou o químico Andrea Sella na série da BBC In the Element.

No Império Chinês, os poderosos consumiam elixires de vermelhão para prolongar a vida e obter a imortalidade.

E até hoje existem cerca de 40 medicamentos tradicionais que contêm cinábrio.

Do Oriente Médio à América Latina, ele também era usado em rituais de bênção e em enterros.

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As mulheres hindus costumavam aplicar o vermelhão na divisão do cabelo e da testa como um sinal de que eram casadas.

O costume tem o nome de sindoor e está relacionado à astrologia hindu, na qual a Casa de Áries ou Mesha Rashi está na testa e é considerada auspiciosa.

Sindoor também é considerado o símbolo da energia feminina de Shakti.

O ritual continua, mas o cinábrio foi substituído por ingredientes mais seguros.

Esse tem sido o destino do vermelhão: sua relação tóxica com o mercúrio foi tirando-o da história.

Especialistas como Terri Ottaway, curador do museu do Instituto Gemológico da América (GIA), explicam que, em sua forma natural, o cinábrio não é perigoso.

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No entanto, quando as temperaturas aumentam, ele libera vapor de mercúrio, que é tóxico se inalado.

"Enquanto o cinábrio não aquece, o mercúrio fica preso no enxofre, o que torna o cinábrio pouco tóxico", explicou Ottaway ao portal "How Stuff Works".

Pablo Higueras, José María Esbrí e Eva M. García Noguero, do Instituto de Geologia Aplicada da Universidade de Castilla-La Mancha, concordam que é a separação dos componentes do cinábrio que oferece risco à saúde.

E acrescentam que há outra razão pela qual o mineral é indiretamente responsável por efeitos prejudiciais: "É comum encontrar gotas de mercúrio metálico juntamente com o cinábrio".

Em todo caso, o uso do cinábrio, à exceção da mineração de baixa escala, foi desaparecendo. Aqueles que são forçados a trabalhar com ele, como os arqueólogos, o fazem com cautela.

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E o vermelhão, que reinou como o pigmento vermelho mais utilizado no mundo, teve que passar sua coroa adiante com a descoberta do vermelho-cádmio no início do século 20.

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