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Cineastas de SP são selecionados para estudar em Cuba

Crias da zona sul da capital, Nay Mendl e Well Amorim trazem vivências LGBT+ e negras em suas produções premiadas

24 ago 2022 - 16h16
(atualizado às 16h18)
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Well Amorim e Nay Mendl, cineastas do zona sul de SP
Well Amorim e Nay Mendl, cineastas do zona sul de SP
Foto: Daniel Arroyo

Em meio a canções de rap e passos de vogue, Luz, uma travesti negra de 20 anos, faz um lip sync (dublagem) de um dos louvores que a acompanham desde a infância no bairro do Grajaú, uma das quebradas do extremo sul da cidade de São Paulo.

“Quando as pessoas assistem ao filme, essa é uma das cenas que as pessoas vêm falar com a gente: ‘caramba, nunca imaginei, que coisa maluca’ e não é uma coisa maluca, é a nossa vida todo o dia, e não é uma contradição ser LGBT e ter uma religião”, explica o cineasta Nay Mendl, 28, que também é cria do bairro e um dos diretores do multi premiado curta-metragem Perifericú (2019), idealizado, escrito e produzido de forma independente por artistas LGBT+ periféricos.

É pela capacidade de lidar com temas complexos, pelo olhar coletivo e pelas vivências que Nay, um jovem trans, e Well Amorim, 27, um jovem negro nascido e criado no bairro de Jardim Ângela, também na periferia da zona sul da capital paulista, buscam revolucionar o audiovisual brasileiro por meio de disputas de narrativa. 

Foto: Daniel Arroyo

“Para nós, trazer outras perspectivas, que não sejam no olhar da escassez e de nossos corpos negros, LGBT, trans na perspectiva da morte, é poder possibilitar outro imaginário de futuro para quem vai assistir nosso filme”, pontua Well, um dos jovens que assinam a direção de fotografia da obra, que conta a história de duas jovens trans negras que buscam se encontrar em meio à passagem da adolescência para a vida adulta. 

“O audiovisual nos deve muito porque, a partir do momento que vai se repetindo diversas vezes nós nesse lugar do rechaço e da violência, vai se criando um imaginário social”, completa Nay.

Neste ano, os dois estão correndo contra o tempo para conseguir atingir a meta de uma vaquinha de R$ 86 mil para irem estudar em Cuba, já que foram selecionados pela Escuela Internacional de Cine y Televisión (EICTV) de San Antonio de Los Baños, uma das mais conceituadas e concorridas instituições de cinema. Well vai cursar direção de fotografia por dois anos. Já Nay, três de documentário. 

Como o governo federal cancelou, desde 2017, as bolsas de estudo para brasileiros na escola, a dupla precisou se virar para conseguir arcar com os custos. “São só cinco vagas para cada especialidade, é um processo muito difícil de passar, e nós passamos”, conta Nay. “Foi um processo que a gente nunca pensou que poderia passar e muito menos passar junto”, sorri Well.

No caso de Well, o contato com o audiovisual começou quando passou no vestibular para estudar o ensino médio na Escola Técnica Estadual (Etec) Jornalista Roberto Marinho. “Fui fazer a Etec pensando que ia ser jornalista e, chegando lá, dei de cara com as aulas voltadas para cinema, fiquei um semestre penando, mas depois o bichinho do cinema me picou e comecei a produzir curtas, trabalhos para a Etec”, brinca. 

O rapaz conta que só conseguiu se dedicar aos estudos porque os pais, vindos da Bahia, seguraram as pontas. “Quando eu passei na Etec, eu me vi numa encruzilhada de que ou eu tinha que trabalhar ou tinha que estudar, e coincidentemente eu tinha passado numa entrevista para trabalhar como estoquista no Shopping Interlagos e na mesma semana eu soube que passei na Etec, mas minha mãe conseguiu garantir as contas e fui estudar”, lembra. 

“Esse período em que eles me fortaleceram, em que eu poderia só estudar, foi muito recompensador por tudo que tenho hoje. Quando chegou esse momento de Cuba, foi um orgulho para minha mãe e para o meu pai, e essa perspectiva para famílias periféricas, de que seu parente vai estudar fora, é algo muito distante”, comemora.

Foto: Daniel Arroyo

Já Nay afirma que já fez de tudo e acabou se formando em radiologia. “Eu ia trampar em hospital, adorava, fazendo raio-x, batendo chapa”, conta. A trajetória dos dois se cruza em 2013, quando surge a oportunidade de estudar no Instituto Criar de Tv e Cinema, na região central da cidade, que fornece bolsas para estudantes de periferia.

“Passei no Instituto Criar e só fui estudar em tempo integral porque me deram uma bolsa”, prossegue Nay. “Uma das primeiras oficinas que eu tive foi de fotografia, que era algo que eu nunca imaginei que iria fazer, nunca tive nenhuma câmera. Teve todo esse processo de ir para [o bairro] Bom Retiro todo o dia e eu nunca tinha saído da zona sul, conheci jovens de várias quebradas e isso ampliou muito o meu olhar e o meu universo.”

Depois do curso, tornaram-se os primeiros de suas famílias a se formarem em  universidades. Well com uma bolsa do Prouni para cursar em uma faculdade particular em São Paulo e Nay passou na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Uinla) em Foz do Iguaçu, no Paraná, em 2017. 

“Eu tinha passado com 25 anos, já me achava velho, fui sem a minha família, sem conhecer ninguém, e, enquanto estudava com pessoas de 18 anos bancadas pelos pais, eu fazia freelas e trabalhava porque não podia depender da minha família para estudar num curso de tempo integral, muito elitizado”, lembra. “A gente nunca teve uma referência de como entrar nesse mundo e como viver do audiovisual porque é um ambiente muito fechado, onde todos se conhecem, são linhagens de famílias e de pessoas que trabalham nessa área, para você furar a bolha é um grande desafio.”

O contato com o conteúdo apresentado em aulas também gerou incômodos. “No ensino do audiovisual, existe uma linha muito específica: de onde parte o cinema e qual cinema é estudado e esse olhar costuma ser a partir de um olhar muito europeu, estadunindense, não tem nada a ver com aqui, não tem nada de latinoamericano, muito menos brasileiro. E também parte de um olhar masculino, branco, cisgênero [pessoas que nascem e se identificam com o gênero que nasceram] de como é a vida”, critica Nay.

Foi nesse período que os cineastas passaram a refletir sobre a produção de narrativas em que se sentissem representados, pudessem debater ideias, e fundaram o coletivo Maloka Filmes. “Se você procura na história, o corpo LGBT apresentado no cinema é sempre naquele viés de comédia, satirizado, aquele que sempre morre no final da história, como o corpo negro”, completa Well. 

“Se eu for pensar em qual outro homem negro no audiovisual que eu me identifico, não tem como não mencionar Jeferson De, pela trajetória dele, o Zózimo Bulbul que colocou um homem negro na frente e atrás das câmeras, com personagem com subjetividade, o que é inédito, a Adélia Sampaio também que foi a primeira mulher negra a ter um fime no circuito comercial no Brasil. Essas figuras negras me mostraram que é possível construir uma trajetória ainda que seja diferente de cada uma delas”, continua.

Nay também aponta que as referências não são apenas do cinema. “O movimento rap, Racionais Mcs, Criolo, Sabotage, mas também videoclipes dos anos 2000 que sempre estiveram presentes com a gente, além das pessoas que estão com a gente e que vamos criando nossas referências: o movimento LGBT, o movimento de quebrada, cada vez mais pulsante, as Irmãs de Pau são nossa grande referência, o Mulambo, o Baile Magia Negra, são diversas atividades e coletivos que a gente constrói junto”. 

Uma das obras em que conseguiram ser contemplados por um edital do projeto Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Prefeitura de São Paulo, foi o longa-metragem Raízes (2016), que conta a história de um jovem negro chamado Kelton, morador da Brasilândia, na zona norte da cidade, que busca saber quem são seus antepassados e de que lugar do continente africano sua família veio. Outro projeto que também teve incentivo do poder público foi o Perifericú, que foi a primeira produção ficcional. 

Foram essas produções que levaram a dupla a ir em seus primeiros festivais de cinema. E sentiram mais um contraste quando foram à 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em Minas Gerais, em 2020. “Quando a gente foi, existia uma programação de música que não tinha nada a ver com a gente, não existia um baile, não existe um lugar em que poderia tocar funk e a gente levou nossa caixa de som e fizemos um rolê na rua”, lembra Nay. 

“A polícia chegou e quando falamos que éramos do festival, eles deixaram, mas quando começou a juntar muita gente que trabalha nos espaços do festival e da cidade, a gente mó feliz curtindo, a polícia voltou e disse ‘melhor parar porque tá ficando muito perigoso esse tipo de pessoa aqui’”.

Foto: Daniel Arroyo

Em fevereiro deste ano, o coletivo da dupla decidiu idealizar seu próprio festival: Perifericu - Festival de Cinema e Cultura de Quebrada, que contou com cinco dias de atividades, apresentações e exibições em pontos culturais das periferias da capital paulista e que contou com incentivo do poder público. Um deles foi a Associação Bloco do Beco, no Jardim Ibirapuera, onde Nay e Well receberam a Ponte. 

“A gente percebeu que a nossa existência era muito desrespeitada dentro desses festivais por serem muito elitizados, por isso a gente decidiu criar um festival nosso, que fosse um ambiente seguro e um espaço de celebração da nossa vida. A gente está localizado num território que ficou conhecido na década de 1990 como ‘Triângulo da Morte’ e no processo do festival é o processo de celebrar o ‘Triângulo da Vida’”, explica Well. “Eu cresci nesse lugar que foi considerado o bairro mais perigoso do mundo, ter sobrevivido a isso e fazer articulações no meu território é a celebração da vida também”.

A Maloka Filmes abriu inscrições para produções comunitárias feitas por pessoas LGBT+ e periféricos e premiou participantes com estatuetas com nomes de figuras importantes em cada categoria, por exemplo, o “Prêmio Neon Cunha de Destaque de Roteiro”, em homenagem à ativista negra, ameríndia e trans Neon Cunha. 

Outro foi o “Prêmio Seu Escurinho de Filme Comunitário”, em referência ao líder comunitário e músico Francisco Miguel de Paula, conhecido pelo nome artístico e apelido carinhoso de “Seu Escurinho do Acordeon”, que faleceu durante a pandemia, em 2020.

Além do sonho de estudar em Cuba, Nay e Well estão criando um filme que retrate o bairro do Jardim Ibirapuera e tenha como um dos personagens o Seu Escurinho do Acordeon. “É a partir da relação com o território que parte tudo que a gente faz, porque é muito importante para gente contar por onde essas pessoas estão passando. O filme, além de território, também é muito sobre memória, construir uma memória para esse território, seja pela ficção de histórias que já aconteceram, com o nome de alguém que foi importante para o território, para que as novas gerações saibam que essas pessoas existiram e tenham o filme como registro”, afirma Well.

Outro degrau mais alto é retornar de Cuba com o projeto de um centro multimídia ou uma escola de cinema em um bairro periférico. “O audiovisual tanto mudou quanto salvou a nossa vida de formas diferentes, conhecer tantas pessoas, tantos lugares a partir do audiovisual é um grande privilégio”, aponta Nay. “A gente é um ponto fora da curva e sempre que estamos nesses lugares de privilégio sempre somos os únicos, é muito solitário e muito revoltante, porque existe uma cota nesses espaços e nós somos ela hoje em dia, o que deveria ser o contrário”.

A ideia é possibilitar mais oportunidades para pessoas como eles. “Foi nessa trajetória que a gente percebeu que os espaços culturais são muito escassos para quem é de periferia e o que a gente quer é trazer de volta esse conhecimento para quebrada, que também possam ver o audiovisual como uma possibilidade de trabalho ou mesmo só para contar suas histórias”, finaliza Well.

Conheça as produções do Maloka Filmes no YouTube e no Instagram. Mais informações sobre a vaquinha dos cineastas: aqui

Ponte
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