Há 100 anos, suicida de morro carioca virou poema que mudou a literatura brasileira
Manuel Bandeira narrou, em linguagem quase jornalística, a morte de um morador de favela que se jogou na Lagoa Rodrigo de Freitas
João Gostoso, protagonista do poema, era morador do Morro da Babilônia, “espaço da favela e da miséria anônima”, segundo importante crítico literário. Publicado pela primeira vez em 1925, o poema se baseia em uma história real divulgada pelos jornais.
“Poucas vezes a poesia brasileira soube descer assim fundo para subir tão alto”, escreveu o crítico literário Davi Arrigucci Júnior sobre Poema Tirado de uma Notícia de Jornal, de Manuel Bandeira. Publicado pela primeira vez em 1925 no jornal A Noite, o poema foi inspirado na história real de um morador do Morro da Babilônia cujo suicídio foi noticiado pela imprensa carioca.
Em seis linhas – metade com uma só palavra – o poema saiu em livro no clássico Libertinagem, de 1930, com o qual Manuel Bandeira ajudou a mudar os rumos da literatura brasileira com abordagem realista, linguagem simples, e a história cotidiana protagonizada por um favelado.
E não só: Bandeira quebra convenções ao escrever o poema em verso livre, no estilo de notícia, representando “uma mudança profunda da atitude estética, pois tornava o poeta capaz de extrair poesia onde menos se espera”, afirma Arrigucci Júnior, para quem a obra é “cheia de consequências para os rumos da poesia brasileira até hoje”.
Modernismo abriu picadas para a cultura popular
Se você curte funk, rap, trap, literatura marginal e derivados, saiba, neném, que as picadas foram abertas por poetas como Manuel Bandeira e joias literárias como Poema Tirado de uma Notícia de Jornal. O crítico literário mencionado chama a atenção para os aspectos periféricos da história de João Gostoso, o suicida do Morro da Babilônia.
O apelido revela a “condição social do indivíduo pobre”; seu trabalho, carregador de feira livre, “reforça o traço da condição humilde”; a moradia na favela é uma “habitação tosca, provisória e imprecisa”, analisa Arrigucci Júnior, daqueles monstros sagrados da Universidade de São Paulo (USP).
É uma pena que entre muitos envolvidos com a literatura produzida na periferia haja absoluto desconhecimento e preconceito do que foi o Modernismo e suas consequências para uma visão diversa de país, abraçando a cultura popular numa extensão que vai das palavras aos modos de vida do povão.
O Morro da Babilônia no início do século 20
O Morro da Babilônia já tinha fortificações construídas pelos portugueses no século 18. O nome remete à beleza dos jardins suspensos da Babilônia. No início do século 20, chegaram a existir projetos para ligá-lo ao Morro da Urca, mas não foram realizados.
Poucos anos após a publicação no jornal, e depois no livro Poema Tirado de uma Notícia de Jornal, foram construídos abrigos para soldados brasileiros, que protegeriam o Rio de Janeiro em caso de ataques. Era a Segunda Guerra Mundial.
Foi nesse clima de pouca esperança no futuro da humanidade que outro ícone da literatura brasileira, Carlos Drummond de Andrade, escreveu seu poema intitulado Morro da Babilônia. No estilo denso e filosófico do mineiro, ele homenageia o morro onde “há mesmo um cavaquinho bem afinado”.