Aposentada do presídio, ela já visitou 56 países: 'Casada com o mundo'
Aos 63 anos, Josefa Feitosa já conheceu mais de 56 países da Europa, África, Ásia e América do Sul sem falar outra língua além do português
Depois de 35 anos de serviço como assistente social, quase 29 deles dedicados ao sistema penal do Ceará, Josefa Feitosa, 63, se aposentou, repartiu os bens com os filhos e deixou a casa para trás com uma passagem só de ida rumo a Belém, no Pará. Era o início de uma jornada que já dura pouco menos de sete anos, com passagens por 56 países ao redor do globo e muitas histórias.
As primeiras expedições foram de barco. De Belém a Santarém, em seguida com destino a Manaus. Do Norte, passando no Sudeste e no Sul do Brasil até que Josefa embarcou rumo à Europa. Começou com Portugal e não parou mais, com passagens pela África, Ásia e América do Sul.
"Eu olhava muita revista de viagem, então fiz uma relação de 20 países que eu não queria morrer sem ver", lembra ao pontuar que começou a juntar dinheiro em 2008, oito anos antes de o sonho virar realidade.
Um pouco de aventura, um pouco de perrengue
Quem vê Josefa seguir viagem esbanjando coragem aos 63 anos pode não imaginar que um dia ela temeu assumir esse estilo de vida. Mas o que a assistente social fez foi seguir o velho mantra que diz para ir “com medo mesmo”. E no caso dela, sem falar qualquer outra língua além do português.
O jeito foi abusar das mímicas nas interações necessárias, o que na maior parte do tempo deu certo. Até um incidente em Munique, na Alemanha, um dos 15 países europeus por onde passou: a cearense se perdeu.
A assistente social contou com a ajuda de uma colega para pegar um trem até Salzburgo, na Áustria, cenário do clássico "A Noviça Rebelde" que tanto queria conhecer. "Ela botou [as informações] em alemão pra que eu mostrasse para o guarda, até aí estava tudo dando certo. Fiquei onde disseram que o trem ia parar, mas parou em outra plataforma e eu fiquei desesperada. Comecei a chorar, eu não sabia falar nada. Eu chegava perto do guarda e dizia: 'I'm Brazil'. E nada", lembra.
O impasse só foi solucionado quando um português apareceu e acionou um brasileiro de Minas Gerais que deu a ela a pior notícia: não havia mais trem para aquele dia. Graças ao conterrâneo, Josefa encontrou guarida — passou quatro dias em Munique, foi para casa da irmã dele na Polônia e aconselhada a estudar inglês. Eles a indicaram para um trabalho como babá na Irlanda e a assistente social se matriculou num curso, o que a permitiu passar mais de um ano na Europa.
"Eu estudei muito pouco e aprendi o suficiente", admite ao revelar que não foi a aluna mais assídua em sala de aula. "Quando eu senti que não dava pra me perder, larguei a escola e fui viajar".
Casada com o mundo
É com esse desprendimento que Josefa narra suas andanças. Filhos criados, neto crescido, solteira, ela só seguiu em frente a fim de se realizar. Mas nem sempre sozinha.
Faz amigos e colegas por onde passa e vive romances, como o espanhol, que veio até o Brasil visitá-la quando ela estava com a família, e o marinheiro, que já havia dado três voltas no mundo e a incentivou a fazer o mesmo com um pequeno roteiro de sugestão. "Também conheci uma pessoa no Camboja, fizemos Camboja e Vietnã juntos", conta.
"Mas ultimamente eu estou muito pra mim. (...) Eu sou casada com o mundo".
Sem se fechar para novas histórias, Josefa afirma que a violência, especialmente os índices de feminicídio, a amedrontam. "Querendo ou não, eu sou uma pessoa só. Ultimamente, eu tenho tido medo dos homens", pontua ao reconhecer que também há vulnerabilidades no estilo de vida que escolheu.
Idade não é barreira
Mulher preta e cidadã do mundo, como se define no perfil do Instagram aberto a parcerias, Josefa não está alheia aos preconceitos que atravessam os oceanos. Para ela, no entanto, o etarismo tem sido a expressão mais forte.
"Eu já cheguei em hostel que não me aceitou porque eu tinha mais de 40 anos", aponta. Episódios como esse dão ainda mais sentido ao seu propósito de mostrar que mulheres, especialmente aquelas que já passaram dos 60 anos, ainda têm vida a viver para além do cuidado com a família.
Josefa ressalta: ama os filhos e o neto. Só não vê esse amor como adversário para os seus sonhos.
"Eu tento mostrar para as mulheres da minha idade que a gente tem que deixar essa caixinha que chamam de lar".
É o que defende ao lembrar que mulheres maduras às vezes lidam com situações que vão desde o abandono dos maridos à síndrome do ninho vazio, sentimento que as abate quando os filhos saem de casa.
"São tantas coisas... Quando chega esse momento [de maturidade], vá brincar, é a hora de ir para o playground", aconselha. No seu próprio roteiro, a brincadeira tem fôlego suficiente para até seis horas de trilha, como fez no entorno do vulcão Quilotoa, no Equador, ano passado.
Uma passageira do tempo
Há paralelos possíveis com a carreira que ela seguiu nas prisões e a liberdade de hoje não se prender a lugar nenhum, mas Josefa não se apega a esses clichês. Ela conta que desde criança, em sua cidade natal, Juazeiro do Norte, cultivava o sonho de ser viajante.
"Sempre quis muito viajar. Fui criada numa cidade onde eu via um trânsito enorme de pessoas indo e voltando daquele lugar por conta do turismo religioso — são três romarias por ano arrastando gente em ônibus, pau de arara... E quando eu era pequenininha, o meu passeio favorito era ver o trem chegar. Dizia que queria ser passageira".
Foi aos 17 anos que ela pegou esse trem e foi para Fortaleza sem olhar para trás. O plano era estudar — e Josefa estudou —, mas se envolveu com os movimentos estudantis onde fez política e muitas viagens.
Nessa época, morou em república, pensionato e acha que vem daí o gosto que tomou por viver em hostels e demais moradias compartilhadas como nômade. Não lhe faz falta uma casa própria nem bens materiais, pois tudo que precisa cabe na mala de mão de 40 litros que usa para percorrer o mundo.
"Levo pouquíssima roupa até porque estou sempre mudando de clima", comenta. "Tenho um kit de frio e aí quando eu chego, eu sempre compro roupa em brechó, roupa barata. O que mais tenho é blusinha, roupa íntima. Material de higiene nunca levo porque compro onde eu chego", afirma.
Temor perdeu força
Quando dividiu com os três filhos que era assim que pretendia curtir os próximos anos, Josefa se deparou com os esperados apelos para que desistisse dessa ideia. "Minha filha dizia: ‘é muito arriscado, a gente é preto, o preconceito’, mas eu não acreditava em absolutamente nada". A filha em questão é a antropóloga Izabel Accioly, conhecida por seus trabalhos sobre relações raciais e branquitude.
Porém, Josefa não deu ouvidos e, no fim das contas, avalia que a distância fez bem para o relacionamento familiar também, já que passou a se intrometer menos na vida dos filhos. Com o tempo, eles também foram se acostumando com o perfil da mãe.
"Quando eu fui embora, todo dia eu recebia ligação. De repente, um mês depois, eu recebi uma ligação. Dois meses depois, ninguém lembrava mais de mim", brinca, aos risos. Mesmo em viagens distantes, ela se mantém em contato com a prole e com o único neto, com quem costumava trocar cartas.