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'Não quero morrer sem revê-la': as mães que doaram seus filhos no passado e hoje lutam para reencontrá-los

Mulheres que doaram os filhos décadas atrás relatam angústia e tristeza em busca de respostas sobre paradeiros das crianças.

9 mai 2020 - 07h44
(atualizado às 10h41)
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Daniele Malsa. 48 anos, ao lado do caçula: há 28 anos ela busca o paradeiro do primeiro filho
Daniele Malsa. 48 anos, ao lado do caçula: há 28 anos ela busca o paradeiro do primeiro filho
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

O Dia das Mães é uma data incompleta para a aposentada Josefa Gildete, de 48 anos. "Sempre sinto muita falta da minha filha e me pergunto onde ela está", diz à BBC News Brasil.

A mesma sensação de angústia é vivida pela artesã Daniele Malsa Porfirio, de 48 anos. "Todos os dias penso no que o meu filho pode estar fazendo e se ele está bem", conta. A aposentada Rose Dias, de 60 anos, tem o mesmo sentimento. "É muito ruim não saber onde a minha filha está", lamenta.

Josefa, Daniele e Rose doaram os filhos recém-nascidos décadas atrás, por diferentes motivos. Hoje, buscam reencontrá-los e convivem com a incerteza e a saudade. Em comum, carregam também um medo: morrer sem ter notícias sobre esses filhos que doaram na juventude. "Não quero partir sem saber como a minha filha está", diz Josefa.

Assim como elas, são comuns histórias de brasileiras que doaram os filhos no passado. Esses casos são permeados por situações como gestações não planejadas, falta de recursos financeiros e ausência de apoio do pai da criança. Para muitas dessas mães, entregar o filho para outra família é um gesto de amor.

A entrega de uma criança sem passar pelos trâmites judiciais é conhecida popularmente como 'adoção à brasileira'. O procedimento ocorre, normalmente, com a participação da mãe biológica e dos pais adotivos, que registram o bebê como se fosse seu filho biológico. "Esse tipo de adoção era muito comum no passado, principalmente quando a mãe era muito pobre e não conseguiria criar o bebê", explica a advogada Mariana Turra Ponte, especialista em Direito de Família e Sucessões.

A psicóloga Juliana Martins, que pesquisou sobre mães que entregaram os filhos para outras famílias, afirma que uma das maiores dificuldades enfrentadas por essas mulheres é o estereótipo de que são pessoas ruins.

Josefa Gildete se mudou para São Paulo em busca de emprego, mas logo engravidou após sofrer abuso sexual e teve de doar a filha
Josefa Gildete se mudou para São Paulo em busca de emprego, mas logo engravidou após sofrer abuso sexual e teve de doar a filha
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

"Tudo isso resulta do papel social atribuído à mulher. A compreensão social que se dá a essa entrega é sempre colocando a mãe como ruim, porque se fosse boa não entregaria. É como se significasse falta de amor", diz a psicóloga, que investigou sobre o tema durante o seu mestrado, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). A pesquisa deu origem ao livro Mulheres de Maternidade Impedida (ComArte, 2019).

Juliana trabalhou em um abrigo para mulheres grávidas em situação de vulnerabilidade. No lugar, conheceu histórias de gestantes que planejavam doar os filhos. "Uma mulher que entrevistei e entregou o filho me disse que o que ela fez foi um ato de amor, porque naquele momento não tinha condições de criá-lo e não tinha o apoio de ninguém. Era a única opção e ela escolheu uma família que daria a ele tudo o que precisasse", diz a psicóloga.

Gravidez após abuso

Muitas das histórias das mães que doaram os filhos no passado são precedidas por situações como abuso sexual, pobreza extrema ou abandono familiar.

Josefa morava no município de Crisópolis, na Bahia, quando se mudou para São Paulo, aos 19 anos, em busca de emprego. Na capital paulista, trabalhou como empregada doméstica. Em uma noite, enquanto estava um salão de festas, conheceu um rapaz. "Ele me deu uma bebida batizada. Só me lembro de acordar perdida na rua, sem saber voltar para casa. Eu ainda era virgem", diz.

Aos 48 anos, Josefa relata que cuida sozinha dos dois filhos e nunca esqueceu da filha que teve em 1992
Aos 48 anos, Josefa relata que cuida sozinha dos dois filhos e nunca esqueceu da filha que teve em 1992
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

A aposentada conta que posteriormente descobriu a identidade do homem. "Ele era um caminhoneiro casado. Nunca tive coragem de procurá-lo novamente. Fiquei muito magoada", diz. Também não o denunciou. "Não sabia que era possível fazer isso. Não queria arrumar problemas."

Meses depois, descobriu que estava grávida. "Fiquei desesperada e com muito medo, porque não sabia o que fazer", comenta. Ela revela que não quis procurar o caminhoneiro. "Não queria que ele soubesse, por tudo o que me fez", diz.

Durante a gestação, continuou trabalhando como empregada doméstica. "Só a minha patroa e meus tios de São Paulo sabiam. Não contei para ninguém da Bahia", conta.

"Foram momentos muito difíceis. Eu era uma jovem de 20 anos, totalmente perdida, sozinha e não tinha muito o que fazer", lamenta. Ela revela que a tia, que também morava em São Paulo, disse que a única alternativa seria doar a criança. "Meu tio arrumou um casal que não conseguia ter filhos, falou com a minha patroa e decidiram que dariam a minha filha para esse casal", detalha.

Josefa conta que a filha foi doada no dia em que nasceu, em 11 de janeiro de 1992. "Não consegui amamentá-la", diz a aposentada, aos prantos. "Eu assinei um papel quando a entreguei. Não sabia o que era aquilo exatamente, mas me pediram para assinar", relata.

Ao falar sobre a saudade da filha, ela se emociona. "Entregar a minha filha foi a maior burrada que eu fiz na minha vida. Não deveria ter feito, mas não tinha opção", lamenta.

Anos depois, Josefa começou a procurar pela garota. Ela pediu informações aos parentes de São Paulo. "Meus tios diziam que não sabiam para onde o casal levou a minha filha, mas eu não acredito. Eles nunca quiseram me contar, para eu não ir atrás", declara. Na busca pela filha, também mandou cartas a programas de televisão. "Mas nunca tive nenhuma pista da minha menina", lamenta.

No hospital em que a criança nasceu, a aposentada também não conseguiu notícias que pudessem ajudá-la a encontrar a filha.

Ela se casou, teve filhos e posteriormente se separou. Após se divorciar, deixou São Paulo e retornou para Crisópolis. "Cuidei e ainda cuido dos meus filhos (hoje com 14 e 17 anos) sozinha. Faço o maior esforço para criá-los e todos os dias penso que se eu não tivesse deixado doarem a minha filha, eu também conseguiria fazer esforço para criá-la", diz.

Hoje, Josefa é aposentada por invalidez. Ela tem distonia — síndrome que provoca alteração motora e prejudica os movimentos do indivíduo. Os problemas musculares, para ela, são toleráveis, quando comparados à dor de não ter informações sobre a filha. "Nenhum sofrimento para mim é tão grande quanto não saber onde está a minha menina", diz.

'A minha mãe me obrigou a doar o meu filho'

A dor causada pela saudade do filho também faz parte da vida de Daniele Malsa. A artesã relata que desenvolveu quadro de síndrome do pânico, transtorno de ansiedade e depressão profunda ao longo dos anos, após sofrer intensamente com a falta do primogênito.

Ela tinha 19 anos e morava em Curitiba (PR) quando começou a se envolver com um rapaz da cidade. O breve relacionamento aconteceu às escondidas. "Eu tinha bastante medo de contar aos meus pais, porque a minha família era muito desestruturada. O meu pai era alcoólatra e muito violento. A minha mãe o apoiava em tudo", relata.

Daniele começou a passar mal, procurou um médico e descobriu a gestação. "Eu estava com quatro meses. Pra mim, foi um choque. Eu tinha 19 anos, mas era como uma criança. Eu sequer sabia direito como engravidava. Quando soube da gravidez, fiquei chocada", relata.

Ela não estava mais se relacionando com o pai da criança quando descobriu a gestação. "Nunca mais o encontrei, porque não tínhamos meios de comunicação tão fáceis como agora. Ele nunca soube", diz.

Por meses, a artesã escondeu a gravidez de todos. "Eu usava roupas largas e disfarçava para que ninguém desconfiasse", diz. "Contei para a minha mãe apenas quando fiz oito meses, porque não tinha mais jeito", relata.

A mãe reprovou duramente a gestação da filha. "Ela disse que tinha asco de mim e falou que teria que resolver essa situação logo. Mesmo com oito meses de gestação, fui mandada para a casa de uma enfermeira que fazia abortos", diz. Daniele foi para Lapa, um município no interior do Paraná.

Segundo Daniele, a enfermeira lhe deu chás. "Eram abortivos", diz. Os produtos não fizeram com que a jovem perdesse o bebê, mas anteciparam o parto da criança. "Meu filho veio ao mundo com oito meses."

O bebê nasceu em 23 de outubro de 1991. "Quando tive o primeiro contato com ele, foi muito duro, porque eu me senti culpada por não ter cuidado dele adequadamente enquanto estava na minha barriga", lamenta.

A artesã conta que a mãe apareceu no hospital. "Ela olhou para o meu filho e disse que era a minha cara. Mas falou que a gente não ficaria com ele, porque não queria um neto bastardo", relata.

Três dias após o parto, Daniele e o filho, a quem ela chamou de Angel, foram para a casa da enfermeira. "Essa mulher me disse que uma família no interior de São Paulo iria ficar com ele. Não sei se é verdade. Mas ela tirou o meu filho dos meus braços e me afastou dele. Eu não tive o que fazer, porque não tinha nenhuma condição financeira para criá-lo. Foi um momento horrível."

Daniele diz que caçula sonha em reencontrar o irmão: "Um dos meus maiores sonhos é poder abraçar os meus dois filhos", diz a artesã
Daniele diz que caçula sonha em reencontrar o irmão: "Um dos meus maiores sonhos é poder abraçar os meus dois filhos", diz a artesã
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Daniele nunca mais viu o filho. "Desde então, todos os dias me pergunto o que aconteceu com ele", emociona-se. Ela retornou para a casa dos pais. "Não tinha para onde ir. Tive de voltar, mas com a certeza de que iria embora logo que tivesse condições", relata.

Aos 21 anos, Daniele se mudou sozinha para São Paulo. "O meu principal objetivo era encontrar meu filho. Mas não sabia onde ele poderia estar", diz. Sem indícios sobre a cidade para a qual o filho poderia ter sido levado, ela não conseguiu procurá-lo. "Eu foquei em trabalhar, sempre à espera de um dia conseguir alguma pista dele."

"A minha mãe nunca quis me contar nada sobre o meu filho. Eu acredito que o meu filho está vivo", diz.

Anos atrás, a artesã descobriu que a enfermeira que levou o filho chegou a ser presa por fazer abortos e morreu pouco depois. "Nunca consegui falar com ela para saber o que aconteceu com o meu filho", diz.

Há cinco anos, Daniele revelou o caso aos irmãos mais novos. "Antes, eu tinha vergonha dessa história e não gostava de contar para as pessoas", diz. Um dos irmãos dela buscou informações a respeito do sobrinho na unidade de saúde em que o garoto nasceu. "Mas disseram para ele que os arquivos antigos do hospital haviam se perdido com o tempo e não teriam como ajudar", diz.

Sem respostas, Daniele vive uma espera incerta. "Sempre me pergunto quando ele deu os primeiros passos, quando começou a falar e se a família adotiva cuidou bem dele. É muito difícil não ter respostas", afirma.

Em São Paulo, Daniele se casou e teve outro filho. Há 14 anos, após se divorciar, decidiu recomeçar a vida no Chile. Atualmente mora na cidade de Casablanca junto com o caçula, de 16 anos. "Sempre que abraço o meu filho, fico pensando no carinho que deixei de dar para o mais velho", lamenta.

Em razão da depressão profunda e da síndrome do pânico, teve de abandonar um antigo emprego como promotora de eventos. "Nunca superei o fato de terem levado o meu filho de mim. É um trauma que me afeta até hoje e nunca vou superar", diz Daniele, que hoje produz objetos de cerâmica.

'Eu era uma adolescente perdida'

A depressão também acompanha a aposentada Rose Dias, em razão da saudade da filha. "A culpa que eu sinto é muito grande", declara.

Rose relata que tinha 16 anos quando saiu da casa dos pais, porque queria ter a própria liberdade. Em busca de emprego, começou a trabalhar como dançarina em uma casa noturna em Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá (MT). "Decidi ir para o mundo. Não tinha experiência nenhuma na vida e fui parar em uma boate", relembra.

Ela relata que se envolveu com drogas e engravidou da filha, que batizou como Alessandra Rosa Dias. "Eu tinha 16 anos. A minha vida era completamente desregrada, mas eu amava muito a minha filha", afirma. A menina nasceu em 18 de abril de 1976, em Cuiabá. O pai da criança, segundo ela, não a ajudou de nenhuma forma.

Quando a filha tinha quatro meses, Rose entregou a criança para uma mulher. "Eu estava muito ruim, dopada de tanta droga e, inconsciente. Dei a minha filha, junto com a certidão de nascimento dela, para uma moça que lavava roupas para a boate", diz.

Ela classifica a decisão de doar a criança como uma ação precipitada. "Logo que eu retomei a consciência, vi o que eu tinha feito e me arrependi", conta.

"Mas eu não sabia como procurar aquela mulher para quem entreguei a minha filha. A única coisa que sabia era que ela lavava roupas para a boate. Pedi ajuda, mas ninguém me ajudou. Ali naquele lugar era cada um por si. Eu era uma criança, totalmente inexperiente", relata.

Sem respostas sobre o paradeiro da filha, ela decidiu ir embora de Cuiabá. "Eu fiquei desesperada. Não tinha o que fazer. Ninguém me ajudava e a mulher nunca mais apareceu. Fiquei totalmente sem rumo. Decidi ir para o Rio de Janeiro, tentar recomeçar", diz.

Anos depois, ela retornou à capital mato-grossense, em busca da filha. "Procurei novamente, mas não a encontrei. Não consegui nenhuma pista. Nunca mais encontrei aquela mulher para quem entreguei a minha filha. Acredito que, desde o começo, algumas pessoas sabiam sobre o paradeiro dela, mas nunca quiseram me falar", declara.

Rose Dias relata que entregou filha a desconhecida e nunca mais conseguiu reencontrar a criança
Rose Dias relata que entregou filha a desconhecida e nunca mais conseguiu reencontrar a criança
Foto: Arquivo pessoal / BBC News Brasil

Nas últimas décadas, Rose passou a buscar respostas sobre a filha. Não se casou, nem teve outros filhos. "Todo esse meu sofrimento me transformou em uma pessoa melhor. Me libertei das drogas e passei a ter fé em Deus", diz ela, que hoje é evangélica. "Eu já perdi as contas de quantas buscas fiz. Tentei de tudo, mas nada. Não sei mais o que fazer. É muito difícil passar por tudo isso", declara.

"Eu peço para que essa senhora que levou a minha filha me diga onde ela está. Agradeço por todo o cuidado que tiveram com a minha filha, mas preciso saber onde ela está. Preciso dizer para ela o quanto a amo e pedir desculpas, porque eu era uma jovem inconsequente", diz.

O sonho do reencontro

A legislação brasileira não considera crime o ato de mães entregarem os filhos para a adoção — exceto em casos que envolvam dinheiro. Isso porque a 'adoção à brasileira', apesar de não ser legalizada, costuma ser considerada um motivo nobre pela Justiça, pois normalmente envolve casos nos quais os pais biológicos declaradamente não tinham condições para criar o filho.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma que pais que entregam um filho para outra pessoa perdem qualquer vínculo jurídico com a criança. "A adoção é irreversível, a família biológica perde todo e qualquer direito sobre a criança adotada. Portanto, a mãe que deu o filho a alguém no passado não dispõe de instrumentos legais para reencontrá-lo", diz a advogada Mariana Turra.

Uma lei de 2009 permite que o filho adotado tenha o direito de conhecer sua origem biológica, com acesso irrestrito ao processo de adoção a partir dos 18 anos — ou, antes disso, mediante assistência jurídica e psicológica.

A psicóloga Juliana Martins frisa que nem todas as mulheres que deram os filhos para outras famílias se arrependem posteriormente. "Não há como generalizar e nem dizer que todas as pessoas ficarão impactadas ou sofrerão por causa disso", pontua. Porém, não são incomuns os casos de mães que querem reencontrar os filhos anos após doá-los.

Um dos principais meio de busca para as mulheres que doaram os filhos décadas atrás é a internet. É assim que Josefa, Daniele e Rose tentam reencontrar os filhos. Mesmo sem qualquer indício, elas não desistem. "Uma hora eu sei que vou encontrar a minha filha. É o que mais desejo em minha vida", diz Rose.

"Eu sempre peço a Deus para que não me leve antes de reencontrar a minha menina. Preciso contar para ela sobre tudo o que aconteceu comigo e o quanto a amo", relata Josefa.

"Tenho muito medo de que alguém tenha dito algo ruim sobre mim para o meu filho. Tenho medo de que ele me odeie por tê-lo abandonado. Queria, ao menos, uma oportunidade para me explicar. Queria que meus dois filhos estivessem juntos, ao menos uma vez na vida", afirma Daniele.

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