Um guia para quem é guloso (e pra quem quer deixar de ser)
Salve, salve!!! Salve-se quem puder.
A Gula é geralmente associada ao comer em demasia, mas beber descontroladamente também se encaixa neste pecado capital. Você que encheu a lata no churrasco do final de semana, além de um beberrão é um glutão descontrolado.
A Gula é o desejo insaciável por comida e por bebida. Está diretamente relacionada ao egoísmo humano: querer sempre mais e mais, não se contentando com o que já se tem. É uma forma de cobiça ou ganância, tema da última coluna.
(Leia ouvindo a playlist Pura Gula. Começa com o vozeirão elegante e imponente de Lou Rawls e segue com clássicos da disco e dance music dos anos 70 e pop rock dos 80. São 120 canções pra quem tem fome de música boa e sede de bom gosto.)
Por definição, a gula é o pecado associado ao desejo de comer e beber de maneira exagerada, para além das necessidades. Esse pecado tem a ver com a perda de controle em relação ao próprio corpo. O oposto da gula é a moderação.
Na verdade, quase todos os pecados estão relacionados à falta de moderação. No caso da gula, trata-se do consumo em excesso de comida e bebida, ao qual se atribuem males físicos e espirituais, já que pode levar a outros pecados, como a preguiça. A gula é uma manifestação da busca da felicidade em coisas materiais.
No mundo corporativo, segundo a Cintia Dias “Substitua comida por qualquer outra coisa que satisfaça o ego e será possível perceber a fome insaciável que move muitas pessoas. Enquanto a avareza peca pela falta, a gula peca pelo excesso. Do Latim gulla, a palavra vem de garganta, esôfago, goela. O guloso sofre de eterna insatisfação. Falta-lhe a temperança - a virtude dos moderados e comedidos.”
O planeta tem 7 bilhões de habitantes e produz alimentos para 14 bilhões de pessoas, mas mesmo assim temos mais de 1 bilhão passando fome. Isso torna o pecado da gula ainda mais obsceno, ultrajante e desrespeitoso. Hoje em dia a fome também é chamada de insuficiência alimentar. Nada mais do que um nome neoliberal ou politicamente correto para um problema crônico.
Se alguns poucos comem e bebem em excesso e uma imensa maioria passa dificuldades básicas, não podemos dizer que nossas sociedades são minimamente justas, ainda mais que o capitalismo deu certo. Na verdade deu sim, mas pra quem está no topo da pirâmide. Financeira e, consequentemente, alimentar.
Moderação e equilíbrio é o grande desafio do ser humano, não só na mesa, mas em tudo na Vida. Se contentar com o suficiente e não querer sempre mais. Isso varia de pessoa pra pessoa e poucos sabem os limites de quando e onde parar. A grande maioria olha para o lado, vê o amigo ou vizinho com “mais”, faz a comparação mental e instantaneamente passa a desejar, mesmo sem haver necessidade alguma de possuir aquilo.
Isso explica a situação atual do meio ambiente e da desigualdade imoral em que vivemos. É a Economia do Desejo prestando grande desserviço a tudo e a todos.
Uma família de glutões na mesa ao lado
Ano passado nossas férias foram num hotel desses “all inclusive” com café da manhã, almoço e jantar incluídos, como o próprio nome entrega. A princípio, o que seria uma comodidade após alguns dias virou um martírio. Entrar naquele restaurante por alguns minutos para satisfazer necessidades básicas já não era mais prazeroso ou mesmo saudável. Com tanta fartura e opções de escolha acabamos comendo bem mais do que o necessário.
No café da manhã a maioria dos comensais entupiram seus pratos com até dez croissants e oito fatias de melancia (eu contei). Para evitar ter que se levantar várias vezes da mesa pra buscar mais comida, a "solução" era empilhar o máximo possível nos pratos de uma só vez. Como era impossível comer tudo, o resultado era o desperdício diário de quilos e, ao longo das semanas, toneladas de comidas saudáveis e intactas que iriam certamente direto para o lixo.
Em pelo menos cinco das famílias presentes, o progenitor era um ogro parente do Shrek recém chegado do Biafra e que parecia nunca haver visto um prato de comida. A cadeira mal o cabia e se sustentava sabe-se lá como. O mais impressionante é que estes sujeitos quase não desperdiçaram. Enchiam o papo e trucidaram tudo que viam pela frente, até mesmo os restos dos filhos e da mulher. Eram cenas dantescas.
Após alguns dias já não suportávamos mais ver aquilo. Passamos a evitar os almoços e a chegar para o café nos 15 minutos finais, quando os impacientes funcionários marcavam no cronômetro o momento exato de desligar as cafeteiras e máquinas de suco. Sentiam um êxtase similar a um gol em final de campeonato. A cara deles era de prazer ao ver um incauto hóspede com xícara e pires na mão colocar um pouquinho de açúcar mascavo, afinal é mais saudável, depois apertar o botão do capuccino e nada sair.
Alguns glútões tardios reclamavam, agitavam os braços roliços ao mostrar o relógio marcando 9:04h da manhã enquanto os uniformizados carrascos balançavam as cabeças negativamente em regozijo público. Nem água dava pra mais beber, pois jorravam das máquinas de suco já travadas com senhas criptografadas impossíveis de serem hackeadas.
Restava a cada um abaixar a cabeça, devolver as louças limpas e vazias e subir até o bar. Ali poderiam pedir um espresso, um shot de alegria e prazer quente por um preço camarada. O sorriso cínico da ruiva ao entregar a notinha apenas revelava o final maquiavélico do plano iniciado lá embaixo no desligamento das cafeteiras do restaurante resultando na cobrança do café e engordando a conta a pagar no fim da estadia.
Apesar da gulodice, a praia era deslumbrante, o mar azul marinho do Mediterrâneo inigualável e a cerveja servida em chopeiras que poucos sabiam operar era honesta e farta, apesar das torneiras secarem às 13:31h após o almoço e às 21:02h ao fim do jantar. A temperatura entre 28 e 30°C e o sol poente fechavam o cenário quase perfeito das férias de verão em família.
Quanto ao hotel, não, nunca mais pretendemos voltar lá. A região sim, vale a pena uma segunda ou até terceira chance.
Para ver e ler
Filme: Festa de Babette (1989) de Gabriel Axel. O despertar dos sentidos através da comida.
Dinamarca, século 19. A parisiense Babette (Stéphane Audran) chega no vilarejo após a morte do rigoroso pastor luterano pai de Filippa e Martine. Ela se oferece para ser cozinheira e faxineira da família. Anos depois, ainda trabalhando lá, fica sabendo que ganhara na loteria e se oferece para preparar um jantar em comemoração aos 100 anos do nascimento do pastor.
A princípio com medo do que estava por vir, os paroquianos acabam aceitando o banquete de Babette sem saber da epifania que causaria e das transformações na pequena comunidade.
Ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro e mostra bem a relação entre a arte e o sagrado. A Gula, no caso, é de sentidos, prazeres e gostos despertados com o banquete de Babette.
Livro: O Clube dos Anjos, Luis Fernando Veríssimo (1998). Uma bem humorada celebração da Gula com a história de dez homens entregues a saciar a fome sem ter medo da morte.
A apresentação me fez lembrar do meu saudoso Pai. Ele ficava intrigado e indignado com essa necessidade diária de comer. Poucas horas após o café virava e dizia “Daqui a pouco vamos comer de novo no almoço. Pra que tudo isso?” Achava o corpo humano muito ineficiente neste aspecto e queria que alguém algum dia inventasse comidas mais poderosas e energéticas para que pudéssemos nos alimentar somente uma vez ao dia.
Em seus últimos dias pediu pra ir ao tradicional Restaurante do Bolão em Santa Teresa pra comer macarrão à bolonhesa, seu prato preferido. Após o desejo se realizar, apesar de não estar presente, sei dos momentos de júbilo dele a cada garfada. Parecia que ali vaticinava sua missão por aqui e se sentiu no direito de partir.
(*) Pedro Silva é engenheiro mecânico pela PUC/MG, PhD em Materiais pelo Max Planck Institut de Düsseldorf, vive em Viena na Áustria, faz uma lasanha muito boa e escreve semanalmente a newsletter Alea Iacta Est.