Guerreiras do K-Pop x guardiões da infância: essa batalha precisa mesmo existir?
*Por Bia Perpetuo
"Deixa eu ser o demônio, pelo amor de Deus!" — ouvi de uma criança de 5 anos, no auge da sua infância, em meio a uma brincadeira no parque, que fica atrás da minha sala. Poucos dias antes, uma menina de 4 anos cantava, com a inocência própria da idade: "A patricinha trocou o gin pela cerveja..."
Duas falas, ditas com leveza infantil, mas carregadas de um mundo que não pertence à infância. Essas cenas me atravessaram. Não nasceram das crianças, mas de um repertório que lhes chega antes da hora. Não se trata de demonizar músicas, artistas ou produções culturais — elas têm seu espaço.
A pergunta que precisamos fazer é outra: será que esse espaço é o da primeira infância? Dos 0 aos 6 anos, mais de 90% das conexões cerebrais que teremos para a vida são formadas. É uma etapa de aprender, de brincar, inventar histórias, criar vínculos e aprender a lidar com emoções. Mas, cada vez mais, vejo crianças pequenas reproduzindo letras sobre bebidas, traições e violência. Estamos prolongando a velhice com saúde e avanços, mas encurtando a vida infantil com pressa. É fundamental não confundir ser infantil com ser infantilizado. A criança infantil vive sua idade plenamente: chora, sonha, pergunta, imagina. Já a infantilizada é aquela que não avança quando poderia, porque não lhe é permitido desenvolver autonomia. Queimar etapas acelera demais; segurar etapas atrasa demais.
Guerreiras do K-Pop
O equilíbrio está em deixar que cada fase aconteça no seu tempo. Outro dia, observei um grupo de crianças brincando de imitar as coreografias da animação
"Guerreiras do K-Pop". Era bonito ver a alegria e a imaginação de ser herói. Ali havia elementos que cabiam na infância: a dança, a cor, a fantasia. Mas também é preciso filtrar: algumas falas e enredos não pertencem ao universo infantil. O mesmo vale para músicas como as de Ana Castela: melodias alegres, fáceis de cantar, mas letras que falam de gin e relacionamentos adultos. O problema não é a cultura pop, mas o recorte que fazemos dela.
Às vezes percebo certas incoerências. Já vi, por exemplo, histórias infantis que traziam mitos folclóricos serem recebidas com estranhamento, enquanto pouco se questiona quando crianças pequenas repetem letras de músicas que falam de álcool ou de relações adultas.
Filtros para uma infância saudável
Não se trata de comparar ou de excluir, mas de refletir: o que, de fato, pertence ao universo da infância e o que pode esperar para ser compreendido em outra fase da vida? Meu pai uma vez pegou um filtro de café, daqueles de papel, e disse: "Dentro do seu cérebro existe um filtro. Algumas coisas você deixa entrar, outras não servem."
O detalhe é que, na infância, esse filtro ainda não existe. O cérebro da criança registra tudo, sem distinção. O córtex pré-frontal, responsável pelo autocontrole, só amadurece na adolescência. Outro exemplo de falas do meu pai também ecoa em mim até hoje: "Entre 8 e 80 há 72 possibilidades." Ou seja, não precisamos escolher entre proibir tudo ou liberar tudo. Mas todos os caminhos precisam de filtro. A ciência confirma o que vemos.
O relatório do UNICEF mostra que a exposição precoce a telas está ligada a atrasos de linguagem e dificuldades de atenção. A Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda limitar o tempo de telas e adiar ao máximo o contato com redes sociais. A APA (sigla em inglês para American Psychological Association) aponta que adolescentes expostos cedo a mídias digitais apresentam índices mais altos de ansiedade e depressão. Não por acaso, a proibição de celulares nas escolas tem se espalhado por diversos países, inclusive o Brasil.
Valores da infância
Preservar a infância não é censurar, é guardar. Guardar as cantigas, os jogos, as descobertas. Guardar também os encontros com a cultura pop, mas de forma ressignificada e adequada. A infância é como um jardim: não se protege com pressa, mas com cuidado.
Por isso, a pergunta que precisa ecoar é simples: isso pertence ou não pertence à infância? O que pertence, floresce. O que não pertence, pesa. E talvez a verdadeira batalha não seja entre "Guerreiras do K-Pop" e "Guardiões da Infância", mas entre a pressa de empurrar o mundo adulto para dentro da infância e a coragem de proteger o tempo que é só da criança.
* Bia Perpetuo é coordenadora pedagógica com 30 anos de experiência na educação e 18 dedicados à liderança pedagógica. Apaixonada pelo ensino infantil, defende a preservação da infância como fundamento para uma formação humana integral.