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Amazônia Preta: quando ciência e ancestralidade se encontram nas comunidades quilombolas

Projetos de pesquisa com quilombos da Amazônia mostram como essas comunidades são guardiãs da biodiversidade e do conhecimento ecológico

12 nov 2025 - 09h03
(atualizado em 12/11/2025 às 12h18)
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Moradores da comunidade quilombola do Tambor, no Rio Jaú, Amazonas: o conceito de Amazônia Preta engloba um território de confluência onde se encontram negros, indígenas, brancos e mestiços aquilombados, unidos pela consciência coletiva de que onde os povos afrodescendentes cuidam da terra, a floresta resiste e permanece de pé - uma constatação já publicada até em artigo na revista Nature.
Moradores da comunidade quilombola do Tambor, no Rio Jaú, Amazonas: o conceito de Amazônia Preta engloba um território de confluência onde se encontram negros, indígenas, brancos e mestiços aquilombados, unidos pela consciência coletiva de que onde os povos afrodescendentes cuidam da terra, a floresta resiste e permanece de pé - uma constatação já publicada até em artigo na revista Nature.
Foto: Elaíze Farias / Amazônia Real, CC BY / The Conversation

Em uma conversa sobre a invisibilidade da população negra no Brasil — nascida das experiências pessoais e profissionais de cientistas negros e de um pesquisador branco periférico — emergiu uma reflexão sobre a força e, ao mesmo tempo, a invisibilização dos conhecimentos e saberes tradicionais.

Dessa troca nasceu a ideia da "Amazônia Preta", um conceito que reconhece uma dimensão da floresta historicamente silenciada, mas pulsante: aquela que carrega as marcas, os modos de vida e os saberes das populações negras, quilombolas e afrodescendentes.

Aquilombamento

Os quilombos amazônicos foram espaços de resistência pela sobrevivência, formados por negros e negras de origem africana e seus descendentes que foram escravizados. Mas eles criaram vários mecanismos de resistência, entre eles a fuga.

Como uma possibilidade de existência durante o sistema colonial, os quilombos brasileiros, que tem sua origem no continente africano, foram — e continuam sendo — estratégias de resistência, confluência e liberdade.

A palavra Kilombo advém da língua Bantu, significando agrupamentos de defesa. São espaços de refúgio e criação coletiva, onde o viver comunitário, a partilha e o cuidado com a terra se tornaram parte de uma identidade étnica no Brasil e na América Latina.

Embora majoritariamente negros, os quilombos sempre foram espaços abertos, que aceitaram indígenas, brancos desafortunados e outros povos marginalizados. Essa pluralidade é a própria essência do aquilombamento: uma rede de solidariedade e reciprocidade que desobedece as hierarquias raciais e coloniais.

É tecer relações que unem o humano, o território e o sagrado, em um movimento que o pensador quilombola Nêgo Bispo chama de biointeração: uma convivência em que gente e natureza se coproduzem, se equilibram e se regeneram mutuamente. Essa sabedoria, tantas vezes negligenciada, começa agora a ser reconhecida pela própria ciência.

Um estudo publicado na Nature revelou o que as comunidades quilombolas sempre souberam: onde os povos afrodescendentes cuidam da terra, a floresta resiste e permanece de pé.

Pesquisadores analisaram territórios no Brasil, Colômbia, Equador e Suriname e descobriram que as terras ocupadas por quilombolas e afrodescendentes têm até 55% menos desmatamento do que áreas vizinhas, além de abrigarem ecossistemas entre os mais ricos em biodiversidade do planeta.

Esses territórios são os verdadeiros guardiões de carbono, de histórias e de futuros possíveis. Neles, o conhecimento ancestral africano se entrelaça com o conhecimento indígena, construindo o afroindígena, que respeita, cuida, preserva e protege a floresta tropical, formando sistemas agroflorestais, cultivos diversificados e uma ética do cuidado que desafia o modelo predatório de exploração.

Amazônia Preta

A Amazônia Preta é, antes de tudo, uma Amazônia quilombola - um território de confluência, onde se encontram negros, indígenas, brancos e mestiços aquilombados. Nascida dos passos firmes de quem não aceitou ter seus corpos, mentes e almas condenados à escravização, resistindo em um processo de aquilombar-se em um território para construção de uma liberdade coletiva em diferentes regiões da Floresta Amazônica.

Dessa reflexão nasceu a proposta de um projeto voltado ao estudo da Amazônia Quilombola e de sua importância para a biodiversidade, destacando o papel das comunidades quilombolas como guardiãs da biodiversidade e do conhecimento ecológico.

Com a abertura das chamadas do programa Amazônia +10 para expedições científicas, nasceu o Biotech Quilombo. Esta iniciativa pioneira coloca as comunidades quilombolas no centro do monitoramento da biodiversidade amazônica, combinando conhecimento ancestral e ciência de ponta para desenvolver abordagens comunitárias e tecnologicamente inovadoras de conservação ambiental.

O projeto busca criar um modelo de pesquisa verdadeiramente colaborativo, em que sensores, biotecnologia e saberes tradicionais se unem para fortalecer a autonomia das comunidades na gestão de seus territórios e na preservação da floresta.

A partir dessa base, surgiram outras iniciativas complementares. Uma delas é o Projeto Transformando Evidências e Resultados em Ações Quilombolas para Conservação Inclusiva de Gênero e Gestão Territorial na Amazônia Legal Brasileira - TERAQ_G, que integra tecnologias regenerativas, dados ambientais e saberes locais para promover a restauração ecológica e a governança territorial em territórios quilombolas e tradicionais.

Outra iniciativa nascida nesse contexto é o COSQUI (Conflitos Socioambientais, Saúde Mental e Quilombos), voltado à coprodução de conhecimento socioambiental com foco na promoção da saúde mental nos territórios, aproximando pesquisadores, mestres quilombolas e jovens líderes comunitários de diferentes regiões do Brasil.

Juntas, essas iniciativas caminham na mesma direção: unir tecnologia e ancestralidade para preencher as lacunas da ciência tradicional, fortalecer a autonomia dos povos da floresta e construir pontes entre cultura, ciência e ambiente.

Esses projetos representam mais do que pesquisa: inspiram uma nova forma de fazer ciência — uma ciência em que o conhecimento tradicional e o acadêmico se encontram de forma simétrica, horizontal e inclusiva.

Novas formas de fazer ciência

A urgência de novas formas de fazer ciência também se revela nos números. Um relatório do projeto Synergize mostra que, embora a Amazônia concentre quase metade do território brasileiro, ela recebe menos de 10% dos recursos nacionais destinados à pesquisa em biodiversidade.

A maioria dos estudos ainda se concentra nas áreas próximas a grandes centros urbanos, enquanto regiões de nascentes, florestas de terra firme e territórios quilombolas permanecem fora do mapa da ciência. Essa desigualdade geográfica e epistêmica mostra porque é tão importante apoiar redes de pesquisa que integrem universidades, instituições e comunidades locais — e que valorizem saberes construídos no próprio território.

É uma ciência colaborativa, que reconhece que saber não é monopólio de laboratórios ou universidades, mas também floresce nas comunidades que há séculos observam, sentem e cuidam da floresta. Essa forma de produzir conhecimento não é apenas uma escolha metodológica, mas também política.

Pesquisadores latino-americanos têm mostrado que a decolonização da ciência começa quando o conhecimento é coproduzido com as comunidades, e não apenas sobre elas. A ética também é parte essencial dessa nova ciência. Pesquisadores e pesauisaras do Brasil têm lembrado que trabalhar com povos indígenas, quilombolas e comunidades locais exige muito mais do que formulários de consentimento: requer reconhecer a soberania desses grupos sobre seus próprios saberes e construir relações baseadas em confiança e reciprocidade.

A pesquisa só é verdadeiramente ética quando promove justiça epistêmica — isto é, quando diferentes modos de conhecer o mundo coexistem sem hierarquia e sem traduzir os saberes locais à lógica da ciência ocidental. As trajetórias quilombolas precisam ser visibilizadas em suas praticas de resistência e de conservação dos seus territórios de forma ancestral na Amazonia.

É nesse ponto que o verbo aquilombar — como ensina Nêgo Bispo — ganha força. Aquilombar não é apenas buscar refúgio: é criar espaço de confluência, de partilha e de reinvenção coletiva. É transformar o ato de pesquisar em um gesto de encontro — onde a ciência desaprende a dominar e reaprende a escutar.

Essa perspectiva ressoa fortemente na Amazônia Quilombola, onde o conhecimento ancestral não é "objeto" de estudo, mas fonte ativa de teoria e transformação, capaz de renovar o próprio sentido do que chamamos de ciência. A Amazônia Preta também nasce dessa mesma perspectiva: a ciência feita com os quilombos, e não sobre eles. Uma ciência que se constrói caminhando junto, onde a troca de saberes é também um gesto de cura e de futuro.

No contexto da COP 30, em Belém, essa trajetória ganha ainda mais relevância. A presença de vozes quilombolas, aliadas à ciência e à inovação, reforça a urgência de articular saberes tradicionais e tecnologias contemporâneas para enfrentar os desafios climáticos e promover uma transição justa e inclusiva para toda a Amazônia. Pessoas não quilombolas precisam aprender com as comunidades quilombolas esses caminhos ancestrais para conservação da floresta, agindo de maneira ativa na construção de ações para diminuir o aquecimento global de uma forma não colonista.

Devemos atuar com o foco no envolvimento dos vários atores em uma coalização de confluência para a preservação da floresta e combate as mudanças climáticas em que as comunidades quilombolas estejam no centro das tomadas de decisão como uma forma de justiça ambiental ancestral.

_A equipe de coordenação do projeto Amazonia BiotechQuilombo é composta pelos Drs. Celso H.L. Silva Junior (IPAM, CNPq, FAPESPA), Polyanna da C. Bispo (UoM, UKRI), Paulo M.L.A. Graça (INPA, FAPEAM), Nivia P. Lopes (UFRR, FAPRR), Pitágoras da C. Bispo (UNESP, FAPESP) e Loïc Pellissier (ETH Zurich, SNSF) _

The Conversation
The Conversation
Foto: The Conversation

Polyanna da Conceição Bispo recebe financiamento do programa Amazônia +10 (Fapesp, Fapespa, Fapeam, Faperr, CNPq, UKRI, SNSF) e da British Academy

Crystiane Amaral Coutinho recebe financiamento do programa Amazônia +10 (Fapesp, Fapespa, Fapeam, Faperr, CNPq, UKRI, SNSF)

Fernando Geraldo de Carvalho recebe financiamento do programa Amazônia +10 (Fapesp, Fapespa, Fapeam, Faperr, CNPq, UKRI, SNSF) e da British Academy

James Ferreira Moura Junior recebe financiamento do programa Amazônia +10 (Fapesp, Fapespa, Fapeam, Faperr, CNPq, UKRI, SNSF) e da British Academy

Maria Páscoa Sarmento de Sousa recebe financiamento do programa Amazônia +10 (Fapesp, Fapespa, Fapeam, Faperr, CNPq, UKRI, SNSF)

Anderson do Rosário Borralho, Celso H. L. Silva-Junior e Maria A. F. Malcher não prestam consultoria, trabalham, possuem ações ou recebem financiamento de qualquer empresa ou organização que poderiam se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelaram nenhum vínculo relevante além de seus cargos acadêmicos.

The Conversation Este artigo foi publicado no The Conversation Brasil e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons
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