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Cannabis S/A: afinal, quão promissor é esse mercado no Brasil?

Desde 2015, diversos novos negócios foram gerados. Conheça os que deram certo

3 ago 2022 - 01h00
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Foto: Unbox / Reprodução

Nos primeiros meses de 2022, bombaram notícias da Anvisa liberando o uso de novos produtos feitos a partir da cannabis e permitindo a fabricação deles no Brasil. Tal conquista aquece ainda mais um mercado que está crescendo no país e motiva indústrias farmacêuticas e empresas nacionais e internacionais a correrem para garantir a autorização de produção local dos medicamentos, em vez de continuar importando. 

Só que a história da cannabis farmacêutica no Brasil começa anos antes e de uma forma, digamos, peculiar. Digo isso porque a liberação para o uso terapêutico no Brasil se deu graças à pressão dos próprios pacientes e seus familiares. 

Matheus Patelli, diretor geral da HempMeds Brasil, uma das empresas pioneiras na comercialização de canabidiol no país, lembra bem esse começo: “Era meados de 2014, quando os pais de crianças com crises convulsivas de difícil controle se mobilizaram em grupos virtuais para contar a condição de saúde de seus filhos, que os primeiros pedidos de acesso à justiça surgiram, todos eles motivados pelo bom resultado da terapêutica em outros países, especialmente em casos de pacientes com síndromes raras que tinham convulsões frequentes”. 

Entre esses pacientes que lutavam por acesso ao medicamento, muitos eram crianças com doenças muito raras, como a CDKL5 (uma mutação genética que provoca convulsões frequentes e severas na infância), a epilepsia severa e a síndrome de Dravet. Dessa época até hoje, no entanto, esse perfil de usuários mudou e agora são os adultos os que mais usam a cannabis farmacêutica no Brasil, para tratar condições que vão de epilepsia e dor crônica, passam por doenças neurológicas como Parkinson e depressão e chegam até casos de autismo. 

Quando tudo era mato

Desde que a Anvisa liberou a importação de medicamentos à base de canabidiol, em 2015, o ecossistema da cannabis farmacêutica começou a amadurecer no Brasil. Se antes os pedidos para importação terminavam em processos judiciais ou na importação ilegal, com familiares trazendo o óleo para uso terapêutico na bagagem de viagens, agora é a própria agência reguladora que facilita o acesso, disponibilizando em seu site um formulário simples para que qualquer pessoa física possa solicitar a autorização especial para importar seus remédios (veja aqui). 

“A HempMeds, coincidentemente, fez parte dessa chegada do canabidiol ao Brasil, porque muitos dos pais que viajavam aos EUA em busca de remédio para seus filhos trouxeram o óleo da nossa marca”, conta Patelli, revelando que até 2018 a filial brasileira da empresa tinha apenas três funcionários: “De lá pra cá, houve muita flexibilização por parte da Anvisa para importar esses remédios prontos para a venda e os preços também mudaram muito; hoje são bem mais acessíveis, embora ainda sejam produzidos com mão de obra dolarizada, devido à importação”.

É importante esclarecer que, nesse modelo de negócios anteriormente regulamentado pela Anvisa, só se permitia a importação do produto final para uso de um determinado paciente – lembrando que é preciso receituário médico para a compra. “Por isso, empresas como a nossa não conseguem fazer vendas ao público em geral, nem distribuição a outras farmácias, tampouco guardar o produto em estoque. Em linhas gerais, ele é importado e chega diretamente na casa do paciente”, explica o diretor da HempMeds. 

O que muda na nova regulamentação

Em 2020, no entanto, isso mudou. Com a permissão da Anvisa para o processamento e a venda da substância derivada da maconha em território nacional, o acesso de pacientes ficou mais fácil, e o modelo de negócio das empresas tem se transformado.

 “Mesmo com a facilidade que essa nova regulamentação traz para o comércio da cannabis farmacêutica, o custo do produto ainda não deve sofrer grande redução. Isso porque, nos EUA, esses produtos são regulamentados como suplementos e, aqui, embora a Anvisa tenha criado uma categoria específica para eles – não são medicamentos, são produtos de cannabis com fins medicinais –, o fato de receber uma graduação farmacêutica não barateia o preço de venda em relação ao importado”, explica o diretor da HempMeds. Por essa razão, em um primeiro momento, a empresa optará por continuar importando o produto para distribuir e vender em farmácias de manipulação, antes de pensar em construir plantas fabris no Brasil.

A diferença de preço entre o produto importado e o de produção local também chama atenção de Rubens Wajnsztejn, neurologista, professor da Faculdade de Medicina do ABC, diretor da Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNI) e o primeiro presidente da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide (APMC).

Apenas como curiosidade, a ritalina, fármaco usado no país desde 1955, não é produzida no Brasil e segue sendo importada para atender à demanda dos pacientes.  

Quem vai fiscalizar?

Outra questão relevante é a garantia da qualidade do medicamento produzido pelas farmácias de manipulação, conforme explica Wajnsztejn: “O Brasil ainda tem um sistema frágil para assegurar a qualidade dos produtos e sua consequente eficácia terapêutica. Isso sem contar a quantidade de produtos artesanais feitos em casa: eu questiono meus pacientes se eles fabricariam um xarope de dipirona em casa também”.

Wajnsztejn foi um dos primeiros profissionais brasileiros a pesquisar e a prescrever produtos derivados da cannabis no Brasil e enfatiza a necessidade da discussão de políticas públicas para o maior controle das medicações feitas com cannabis, para que de fato sejam usadas de forma adequada e eficaz, respaldadas pelas evidências científicas existentes.

O tamanho do mercado

Para além das questões da regulamentação da Anvisa, caso o Brasil aprove uma legislação que tramita como projeto de lei desde 2015 (o PL 399/2015), o cultivo da cannabis e a extração de canabidiol (CBD) e THC no país serão autorizados, conferindo um novo potencial de mercado à cannabis farmacêutica, conforme mostra estudo feito pela New Frontier Data – Cannabis Medicinal no Brasil - Visão 2018.

Foto: New Frontier Data – Cannabis Medicinal no Brasil – Visão 2018

Quem vai se beneficiar

Neurologistas e psiquiatras ainda estão entre os principais prescritores da cannabis medicinal, mas esse perfil deve mudar em breve com o avanço do uso do produto no tratamento da dor crônica. No Brasil, uma revisão de 35 estudos publicada no periódico Brazil Journal of Pain constatou que, em média, 45% da população sofre de dores recorrentes, em especial as mulheres. 

Ainda assim, dos 500 mil médicos brasileiros, apenas cerca de 1% já prescreveu o produto a seus pacientes. Talvez o acesso a evidências científicas robustas ajude os médicos a compreender melhor o potencial de uso da cannabis farmacêutica e, nesse sentido, cursos de atualização à distância estão sendo criados, como este, da Universidade de São Paulo.

Outra iniciativa bem-vinda é a criação da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide (APMC), um grupo científico e sem fins lucrativos formado por estudiosos e pesquisadores no assunto para trabalhar e desenvolver os protocolos terapêuticos e parâmetros para a aplicação da medicina canabinoide.

“Também queremos fornecer à população a lista de locais em que é possível encontrar o tratamento eficaz a partir do uso da cannabis farmacêutica, já que hoje só 5% dos médicos brasileiros conhecem a medicina canabinoide”, enfatiza Rubens Wajnsztejn, presidente da APMC.

E o que esperar do futuro?

A formalização do comércio e da produção de medicamentos à base de cannabis no Brasil é uma realidade que se aproxima cada vez mais. Embora dois canais de acesso ao produto já estejam estabelecidos – via importação ou na prateleira de certas farmácias –, a falta de uma lei nacional e de regulamentações mais robustas da Anvisa mantém alto o custo dos medicamentos, inclusive para o Estado, que em certos casos custeia o tratamento. 

“Para entender essa conta, basta observarmos a quantidade de jurisprudência autorizando o autocultivo e a fabricação do produto por farmácias de manipulação. O objetivo é que, com o avanço das discussões por toda a sociedade, a cannabis medicinal se torne mais barata, acessível e menos estigmatizada”, acredita Patelli.

Para Rubens Wajnsztejn, a maior missão da APMC para o futuro é tornar acessível um tratamento de qualidade com a cannabis farmacêutica para todos os que necessitam dessa terapêutica: “Nos próximos anos, gostaria de ter contribuído para mudar os conceitos e preconceitos em relação à medicina canabinoide, e de ver uma proporção invertida de médicos cientes de seus benefícios: 95% sabendo do potencial do tratamento”.

(*) Renata Armas é colaboradora do Unbox.

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