Análise: Volkswagen Gol e o mito do carro do povo (barato)
Ainda este ano a Volkswagen deve revelar qual será o futuro do Gol, mas faz tempo que a montadora alemã mudou seu conceito de povo
Que fazer com o Volkswagen Gol?
a) Matá-lo com honras depois de 41 anos de vida gloriosa?
b) Mudar totalmente sua característica e transformá-lo num pequeno SUV, aproveitando apenas o nome?
c) Criar um hatchback totalmente novo?
Eis o dilema que, durante um bom tempo, ficou na cabeça do presidente da Volkswagen local, Pablo Di Si. A decisão já foi tomada, mas ninguém fora da Volkswagen sabe qual é. Jornalistas e especialistas têm feito análises, mas a decisão da Volks é desconhecida. Tudo indica que a opção “c” (criar um novo hatch) foi descartada. Afinal, a empresa já tem o Polo, que nada mais é do que um Gol evoluído.
Restam, então, a morte com honras ou a utilização do nome glorioso num SUV. Qualquer que seja a decisão tomada, ela comprova a teoria de que um imaginário pode atravessar uma vida sem que a gente enxergue a realidade. Que imaginário é este? O imaginário do “carro do povo” (portanto, barato). Isso não existe há décadas, mas o brasileiro ainda espera isso da Volkswagen -- nome que, em alemão, significa carro do povo.
Diferentes razões de mercado levaram a Volkswagen a seguir um rumo no Brasil diferente do que teve na Alemanha e nos demais países da Europa. Pelo menos desde 1974, quando o Golf de Giorgetto Giugiaro substituiu o Fusca de Ferdinand Porsche na monumental fábrica de Wolfsburg, na Alemanha, a marca cujo nome original significa “carro do povo” mudou seu conceito de povo.
Relegado a fábricas menores na Alemanha até sua descontinuação, em janeiro de 1978, o Fusca preservou a mística da marca em mercados do Terceiro Mundo, graças à grande produção no México (Puebla) e no Brasil (São Bernardo do Campo). No Brasil, o Fusca resistiu até 1986, mas a Volkswagen já tinha um substituto à sua altura desde 1980: o Gol.
O Volkswagen Gol não apenas manteve a marca alemã na liderança do mercado, como ainda foi além: ultrapassou as vendas do Fusca, esticou durante anos o paradigma das duas portas e manteve a chama de “carro do povo” associada a carro barato. Enquanto na Europa a Volkswagen continuou fazendo automóveis populares, mas focados na qualidade superior e, portanto, fora da guerra de preços com a Fiat, no Brasil aconteceu o contrário.
Nesta terceira década do século XXI, entretanto, nem um país miserável como o Brasil -- riquíssimo em recursos naturais, mas paupérrimo na renda média da população -- acomoda um “carro do povo” bom e barato, como foi o Fusca. O próprio Gol deixou de ser barato quando precisou se modernizar. Mas, durante anos, o Gol G4 segurou as pontas, enquanto o Gol G5 parecia nas fotos de carro mais vendido. Hoje, carro barato não interessa à Volkswagen e tampouco à sua grande rival no país, a Fiat.
Porém, por causa da herança do Fusca das três décadas em que o Gol foi “dinheiro vivo” nas mãos de seus proprietários, temos dificuldade de entender a nova Volkswagen. Já ficou distante o tempo em que a Volks ditava as regras do mercado brasileiro, determinava tendências e era vista quase como uma empresa nacional. Mas nós, brasileiros, temos dificuldade de aceitar a VW sem um carro verdadeiramente popular. Queríamos que fosse o Up, mas a Volks não quis.
Por isso, a decisão que coube a Pablo Di Si em relação ao Gol é histórica. Ele pode entrar para a posteridade como “o homem que matou o Gol” ou como “o homem que transformou o Gol num SUV”. Nem todos gostam de SUV. Nem todos querem um SUV. Na verdade, nem todos precisam de um SUV. Mas o “deus” mercado não se pauta por essas coisas.
Já vimos o Chevrolet Astra ser rebatizado de Vectra para aproveitar o nome. Foi um fracasso. Já vimos o Fiat Uno mudar de geração e rumar vagarosamente para o esquecimento, perdendo espaço para um carro pior do que ele, o Mobi. Já vimos o Mitsubishi Eclipse -- um cupê apaixonante -- se transformar num SUV com design polêmico. Acabamos de ver o nome Ford Maverick -- um cupê de quatro portas dos anos 70 -- ser reaproveitado numa picape!
Mas o Volkswagen Gol não é qualquer carro. Nenhum automóvel fabricado no Brasil vendeu tanto quanto ele. Nenhum automóvel criado no Brasil e para o Brasil conquistou tanto espaço em mercados internacionais. Nenhum carro desenhado nas pranchetas de São Bernardo do Campo gozou de tanto respeito perante a alta diretoria de Wolfsburg. Por isso, se é para manter o nome Gol vivo, que seja num carro realmente acessível.
Finalmente, o fato de já ter decidido se o Gol vai ter uma nova geração, se vai morrer ou se vai virar um SUV, não significa que a decisão foi a melhor. Só saberemos como o público vai reagir quando o novo carro for apresentado. A nova Volkswagen está focada em liderar a tecnologia da eletrificação. Seja na Alemanha, com carros 100% elétricos (família ID) ou no Brasil, com híbridos movidos a etanol. Na Alemanha, a Volks não tem vocação para entrar em guerras de preço desde 1974; no Brasil, pelo menos desde 2013.
Talvez o tempo do Volkswagen Gol tenha mesmo deixado de existir. Sem choro nem vela, ficará para a história como lembrança de um Brasil -- e um mundo -- que não existe mais.